(1) “É necessário acreditar para conseguir o que se quer”.
Esta afirmação (ou alguma variante) é frequentemente feita no dia a dia das pessoas. Em muitos casos, ela pode ter por trás um fundo religioso. Apesar disso, o que vou apresentar aqui não se limita a um contexto específico, principalmente porque a noção de crença é muito geral e não se limita nem ao contexto religioso, nem a nenhum outro. O que vou tentar fazer neste texto é oferecer um modo de compreender esta afirmação. Para isto, vou esclarecer alguns conceitos que estão presentes na afirmação e depois tentarei relacionar com alguns aspectos da teoria que o filósofo Donald Davidson desenvolve em torno do tema da ação*. Já adianto que o que vou dizer é que a teoria de Davidson não só é compatível, como também reforça esta afirmação. Entretanto, para que isto ocorra, precisamos entender de uma forma correta os conceitos que estão envolvidos na afirmação, e algumas de suas “sutilezas” que, segundo penso, normalmente podem ficar mistificadas ou mal entendidas. Os conceitos-chaves serão: condição necessária, crença, ação.
1. Condições Necessárias – “É necessário …”
A nossa afirmação-cobaia começa afirmando que algo é necessário para que se consiga outro algo. Bem, o que significa dizer que algo é necessário? Esta é uma noção lógica que pode ser entendida assim: x é uma condição necessária para y, se y não pode acontecer (ou ser verdadeiro) sem que também aconteça (ou seja verdadeiro) x. Por exemplo, uma condição necessária para alguém ser um ser humano (y) é que seja um mamífero (x).
Em nossa afirmação-cobaia é dito que “é necessário acreditar” para que alguém consiga o que quer. De acordo com o que falamos sobre condições necessárias, podemos reformular a afirmação com que começamos:
(2) “Acreditar é uma condição necessária para conseguir o que se quer.”
Note que é uma condição necessária, mas não se está dizendo que é suficiente. Como no caso dos mamíferos e seres humanos, é necessário ser um mamífero para ser um ser humano, mas não é suficiente: pois pode haver (e há) mamíferos que não sejam seres humanos (gatos, por exemplo). Assim, crer não garante que se consiga o que se quer, mas sem crer é impossível conseguir. A crença sozinha não é suficiente para se conseguir o que se quer; mas é necessária.
2. Ação – “conseguir o que se quer”
Como entender este “conseguir o que se quer”? Bem, penso que “conseguir o que se quer” pode ser entendido como “realizar uma ação”. Conseguir o que se quer está relacionado com atingir um fim pretendido, ou seja, fazer algo intencionalmente, e isto, ao menos em traços bem gerais, é o que caracteriza uma ação.
Por exemplo, posso querer (ou ter a intenção) de comer uma maçã. “Conseguir o que se quer” aqui seria o mesmo que conseguir realizar a ação de comer a maçã. Quando temos uma ação, temos algo (ao menos sob algum aspecto) feito intencionalmente. Com estas últimas considerações podemos assim reformular a afirmação (2):
(3) “Acreditar é uma condição necessária para uma ação”
3. Crença – os meios para o o fim pretendido
É comum dizer que a crença é uma atitude proposicional. Quando acreditamos, acreditamos numa proposição. Proposição (dando uma caracterização rápida) é uma “unidade” (ou quantidade) de informação que pode ser verdadeira ou falsa. Acreditamos, por exemplo, que está chovendo, que o Brasil é um país em desenvolvimento, que comer mata a fome, etc. Quando cremos numa proposição a tomamos por verdadeira. Isto, porém, não garante que a proposição seja verdadeira. Podemos, por exemplo, tomar por verdadeiro que está pegando fogo na casa do vizinho, por estar vendo uma grande quantidade de fumaça vindo do seu pátio e, na verdade, ele ter feito uma fogueira para queimar folhas secas.
Mas o que a crença tem a ver com ação? É neste momento que “chamamos” Donald Davidson. Dissemos anteriormente que agir está relacionado com buscar um fim pretendido. Tenho, por exemplo, a intenção de matar minha fome. “Matar a fome” é, neste exemplo, o fim pretendido (é o que tenho intenção de conseguir). Bem, mas para que eu realize uma ação, ter esta intenção não basta. Qual é o outro elemento necessário? A crença. Eu teria, no exemplo em questão, que acreditar, ao menos, que um certo alimento que tenho disponível matará a minha fome. Para agir é necessário tanto a crença quanto o fim pretendido (vale ressaltar que não estou falando que estes dois elementos sejam juntos suficientes; esta seria outra questão). Quando alguém age, tem um fim pretendido (uma intenção) e uma crença (de que um certo modo de agir o fará atingir o fim pretendido). Penso que podemos dizer que a crença apresentaria o meio para atingir o fim desejado. No nosso exemplo: quero matar a fome (fim), e acredito que comer uma maçã (meio) faria-me atingir o fim. Assim, como nossa afirmação falava desde o começo, a crença é necessária para conseguir o que se quer. Ou, aprimorando nossa afirmação (3):
(4) Crença é uma condição necessária para a ação.
E, assim, finalizo este texto esperando ter, neste caminho de nossa afirmação original (1) até a afirmação mais elaborada (4), ter ampliado a compreensão do leitor sobre a necessidade da crença para a ação (ou para conseguir o que se quer).
Observação:
Um truque (artimanha ou equívoco, quem sabe) que eu talvez tenha feito pode ter sido passar da noção de “conseguir o que se quer” para a noção de “ação”. Alguém talvez possa conseguir o que quer sem uma crença do tipo que consideramos acima como necessária (alguém quer uma coca-cola e, de repente, outra pessoa aparece com uma sem avisar). Assim ela conseguiria o que quer sem ter tido uma crença necessária.
Apesar disso, não diríamos nesse caso que ela agiu. Não foi uma ação sua conseguir a coca-cola. Justamente porque para algo ser uma ação precisa ter sido feito intencionalmente, e para isto, a crença é necessária. Assim, mesmo que o passo de “conseguir o que quer” para “realizar uma ação” não seja legitimo (ao menos sem algumas observações), uma vez dado, mostramos que, para haver ação, a crença é uma condição necessária.
Aguardo comentários, críticas e sugestões ;)
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(*) Donald Davidson foi um filósofo americano que viveu de 1917 até 2003. Baseio-me essencialmente nas ideias de Davidson presentes nos seguintes artigos:
D. Davidson (1963), ‘Actions, Reasons and Causes’, Journal of Philosophy, 60.
D. Davidson (2001), “Agency” in Essays on Actions and Events, Oxford: Clarendon Press, 2nd ed.
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