Podemos entender a ética da saúde pública como uma versão aplicada da ética normativa. Seu propósito é pensar sobre os desafios éticos envolvidos na justificação de intervenções que almejem promover a saúde da população. O texto que segue é baseado no verbete Public Health Ethics, escrito por Ruth Faden (fundadora do Instituto Berman de Bioética da Universidade de Johns Hopkins) e Sirine Shebaya, publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy. O texto consiste, em grande medida, em uma tradução comentada de alguns fragmentos do verbete.

O que é a ética da saúde pública?
“A ética da saúde pública lida principalmente com os fundamentos éticos e a justificação da saúde pública, os vários desafios éticos produzidos por recursos limitados para promover a saúde e por tensões, percebidas ou reais, entre benefícios coletivos e liberdade individual” (introdução). Em outras palavras, as ações realizadas buscando promover a saúde pública—por exemplo, uma campanha de vacinação, medidas para combater a proliferação de insetos transmissores de doenças ou restrições à circulação de pessoas e atividades comerciais para conter uma pandemia—poderão por vezes soar como questionáveis e exigirão uma justificação. Essa justificação é o amparo ético ou moral para a ação e pode buscar avaliar como recursos escassos devem ser empenhados ou gerenciar o custo que as ações realizadas podem ter sobre a liberdade individual.
Principais problemas e abordagens
O texto discute duas abordagens principais sobre os objetivos e desafios da ética da saúde pública.
Concepção consequencialista: “Uma concepção sobre a ética da saúde pública trata os fundamentos morais da saúde pública como um imperativo para se maximizar o bem-estar [welfare] e, assim, vê a saúde como um componente do bem-estar (Powers & Faden 2006). Esta concepção apresenta o desafio ético central da saúde pública como sendo equilibrar as liberdades individuais com a promoção de bons resultados na saúde. Considere, por exemplo, como as liberdades são tratadas nas políticas governamentais que adicionam flúor à água potável ou que obrigam pessoas com tuberculose infecciosa ativa a serem tratadas.” (introdução)
Segundo a abordagem acima, a ética da saúde pública funcionaria nos moldes da ética consequencialista (sobre o consequencialismo, você pode ver este vídeo no YouTube), justificando suas ações em nome da promoção de certos bens (neste caso, a saúde, como parte do bem-estar geral). Os desafios, nesta abordagem, são similares aos desafios do consequencialismo: por vezes os meios mais eficazes para promover o bem podem ser questionáveis. O exemplo comum na discussão do consequencialismo é sacrificar uma vida de modo a salvar várias outras; o exemplo na ética da saúde pública é por vezes sacrificar a liberdade de um indivíduo em nome da saúde do grupo. A título de exemplo, há registro de casos em que um paciente é obrigado judicialmente a aderir a um tratamento para tuberculose e, neste momento, vemos constantemente a tensão entre políticas pública para controle da pandemia e interesses na livre circulação e comércio.
Concepção baseada na justiça social: “Uma concepção alternativa sobre a ética da saúde pública caracteriza seu fundamento moral como a justiça social. Ainda que equilibrar as liberdades individuais com a promoção de bens sociais seja uma das preocupações, ela insere-se em um compromisso mais amplo para assegurar um nível suficiente de saúde para todos e reduzir desigualdades injustas (Powers & Faden, 2006). Assim, uma preocupação adicional é o equilíbrio deste compromisso com o imperativo para maximizar bons resultados agregados ou coletivos na saúde. Entendida desta maneira, a ética da saúde pública tem conexões éticas profundas com questões mais amplas sobre justiça social, pobreza e desfavorecimento sistemático.” (introdução)
Em síntese, portanto, pode-se formular a tarefa principal da ética da saúde pública ou como a busca de um equilíbrio entre os conflitos potenciais entre a promoção da saúde coletiva e as liberdades individuais ou como a busca de conciliação entre a promoção da saúde coletiva e a redução de desigualdades sociais injustas.
Tipos de justificação
O restante do texto descreve alguns princípios a que se pode recorrer quando se busca justificar uma política ou prática que busca promover a saúde coletiva. São também descritas situações específicas em que é mais adequado recorrer a cada uma delas.
Benefício global: por esta via, salienta-se o fato de que as intervenções de saúde, tomadas como um todo, nos permitem alcançar benefícios que não alcançaríamos de outro modo, ainda que algumas intervenções possam não beneficiar diretamente algum indivíduo específico. É crucial, sob este aspecto, que haja regulação para manter as intervenções dentro de limites aceitáveis, mas esses limites precisam ser formulados a partir de outras fontes de justificação, como as listadas abaixo.
Ação coletiva e eficiência: sob este aspecto, a saúde pública ajuda a coordenar e tornar eficiente o comportamento coletivo. “Se uma pessoa (ou, pelo menos, um número suficiente delas) decide passar pelo sinal vermelho e parar quando o sinal está verde, então não importa que todos os outros estejam seguindo as regras: esta pessoa atrapalhará o bom funcionamento do sistema, com resultados potencialmente perigosos” (seção 2.2). De modo similar, se algumas pessoas decidem não seguir algumas regras de saúde (pense, por exemplo, no controle da proliferação de algumas espécies de mosquitos), isso pode prejudicar o acesso a boas condições de saúde ainda que a maioria das outras pessoas esteja fazendo a sua parte.
Equidade na distribuição do ônus: a tese principal aqui é que o ônus (os custos) envolvidos na promoção da saúde devem ser aproximadamente equivalentes para todos os envolvidos. Recorre-se a esta tese para justificar uma distribuição desigual dos custos das intervenções: se um grupo de indivíduos tem maiores dificuldades diante de uma situação, propõe-se que uma intervenção em nome da saúde possa exigir mais de outros indivíduos. Um exemplo é “a política de imunização anual contra gripe do Japão, entre 1962 e 1994, onde as crianças foram imunizadas contra a gripe explicitamente de modo a proteger os idosos, para os quais há maiores chances de a gripe ser fatal e a imunização tem mais chances de ser custosa” (seção 2.3). Neste caso, portanto, a política de saúde aplicava uma exigência maior sobre um grupo (crianças) em função das dificuldades maiores que outro grupo enfrentava (idosos) justificando-a com base na tese de que os custos totais (frutos da intervenção de saúde e outras condições prévias) deveriam ser aproximadamente os mesmos.
O princípio do dano: este princípio é bastante conhecido e deriva do trabalho do filósofo John Stuart Mill no livro Sobre a liberdade. O princípio diz que “a única justificação para interferir na liberdade de um indivíduo, contra a sua vontade, é prevenir o dano a outrem. Recorre-se ao princípio do dano para justificar várias intervenções para o controle de doenças infecciosas, incluindo quarentena, isolamento e tratamento compulsório” (seção 2.4).
Paternalismo: a ideia aqui é que se pode justificar uma intervenção que afete uma pessoa contra a sua vontade para promover o que é melhor para ela. É um princípio controverso. Uma versão mais branda diz que se pode justificar intervenções contra a vontade de uma pessoa em nome de seu bem-estar apenas em algumas circunstâncias, como se sua escolha for “formada sob condições que comprometam significativamente sua autonomia ou voluntariedade, tais como comprometimento cognitivo ou imaturidade e, em casos bastante limitados, ignorância ou crenças falsas” (seção 2.5).
Fonte: Faden, Ruth and Shebaya, Sirine, “Public Health Ethics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/publichealth-ethics/>.
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