Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

…e sobre leis naturais e morais, e a distinção entre fenômenos e coisas em si: Uma brevíssima introdução à filosofia de Kant!

Pintura feita por Johann Gottlieb Becker, 1768

Kant nasceu em 1724 em uma cidade que na época fazia parte da Alemanha e se chamava Königsberg. Ele é classificado como um filósofo alemão do século XVIII e é considerado um dos filósofos mais importantes de todos os tempos. Este texto oferece uma breve introdução a alguns aspectos centrais da filosofia de Kant, com foco na maneira como entende o conceito de liberdade e a distinção entre fenômenos e coisas em si.

Ao contrário do que costuma acontecer nos dias de hoje, Kant produziu um sistema filosófico, o que quer dizer que abordou vários temas de interesse filosófico de maneira integrada. Dois desses temas são a ética, por um lado, e a metafísica e a epistemologia, por outro. Por ética, podemos entender a área da filosofia preocupada com valores, como o que torna uma ação certa ou errada. E podemos entender a metafísica e a epistemologia como áreas da filosofia preocupadas com o conhecimento humano e com como podemos conhecer os aspectos mais fundamentais da realidade.

Um ponto de entrada para a filosofia kantiana é um conceito situado na fronteira onde a ética e a metafísica se encontram. Trata-se do conceito de liberdade. Kant caracterizou a liberdade da vontade (ou capacidade de livre escolha) de duas maneiras relacionadas. A primeira é uma caracterização negativa. Kant diz:

“a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem” (FMC, 3ª seção, p. 93).

Em outras palavras, os seres racionais têm liberdade quando suas escolhas não são determinadas por causas que residam fora de suas capacidades racionais. A caracterização positiva, por outro lado, pergunta: “que outra coisa pode ser […] a liberdade, senão autonomia, i. é a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?” (FMC, 3ª seção, p. 94).

Nesta caracterização positiva, a liberdade é entendida como auto-nomia, que podemos entender como a capacidade da vontade de auto-regrar-se, isto é, a capacidade de dar leis para si mesma. Essas leis, na teoria ética Kantiana, são as formulações do imperativo categórico. Não entraremos em detalhes desta teoria aqui, mas um exemplo de lei que a razão poderia dar a si mesma seria o seguinte: Aja sempre segundo regras que você poderia querer que fossem seguidas por todos os agentes. Se a razão humana pode fazer com que ela mesma siga essa lei, então, segundo Kant, ela é livre no sentido positivo.

As caracterizações da liberdade recém apresentadas, e especialmente a caracterização negativa, geram um problema para Kant. Kant acreditava que todos os fenômenos são determinados por causas anteriores que lhes são externas. Assim, se todos os eventos são o produto de causas determinantes anteriores, não seriam determinadas também as ações e decisões humanas, ao contrário do que exige a liberdade em sentido negativo? Nem todo mundo acredita que a determinação causal exclui a liberdade. Mas Kant defendeu que não temos controle sobre o que aconteceu no passado e que, se eventos passados determinam minhas decisões, assim como determinam os demais eventos, não teríamos liberdade e que, como consequência, a ética como um todo não faria sentido (ver por exemplo, o conceito de responsabilidade moral).

A solução proposta por Kant faz parte de sua metafísica e epistemologia, que fazem parte de seu projeto mais amplo que ficou conhecido como filosofia crítica. A solução proposta para o problema da liberdade consiste em fazer uma distinção entre coisas tal como aparecem para nós pelos sentidos e coisas pensadas em si mesmas. A seguinte passagem faz uso desta distinção:

“O conceito de causalidade enquanto necessidade natural, à diferença da causalidade enquanto liberdade, concerne somente à existência das coisas na medida em que ela é determinável no tempo, por conseguinte, das coisas como fenômenos em oposição à causalidade delas como coisas em si mesmas.” (CRPr. p. 153 [5:94]).

Em outras palavras, Kant diz que a tese de que todo evento é determinado por causas anteriores aplica-se somente às coisas entendidas como fenômenos, isto é, como objetos situados no espaço e tempo que sejam objeto do conhecimento humano. Isso acontece porque é uma lei de nossa própria capacidade de conhecer as coisas mediante os sentidos que as entendamos como encadeadas segundo leis causais.

O conceito de liberdade, por outro lado, aplica-se de outra maneira:

“se ainda se quiser salvá-la [a liberdade], não resta outro caminho senão atribuir a existência de uma coisa … [e] também a causalidade segundo a lei da necessidade natural, simplesmente ao fenômeno, porém atribuir a liberdade ao mesmo ente enquanto coisa em si mesma.” (CRPr. p. 154 [5:95]).

Assim, o sistema filosófico de Kant acaba por fazer uma distinção entre o âmbito das leis da natureza e o âmbito das leis morais. Por um lado, quando buscamos conhecer o mundo, inevitavelmente entendemos os objetos como encadeados causalmente segundo leis naturais, onde eventos anteriores determinam os eventos seguintes. Por outro lado, no âmbito da ética, a razão pensa-se como livre de qualquer determinação externa e como capaz de determinar-se segundo leis morais que dá a si mesma. Não há conflito aqui, segundo Kant, porque as leis da natureza aplicam-se apenas às coisas como fenômenos, ou seja, como objetos que podem ser conhecidos mediante os sentidos. Por outro lado, no âmbito da ética, a razão pensa-se não como um fenômeno, mas como coisa em si mesma ou, como Kant falou, como númeno. As coisas, como númeno, não são objeto de conhecimento mediante os sentidos, mas apenas objetos sobre os quais a mente humana pode pensar.

Como nota final, o projeto kantiano ficou conhecido como filosofia “crítica”. A palavra “crítica” descreve aqui o fato de que Kant buscou especificar os limites do conhecimento humano, especialmente no que diz respeito a temas tradicionais da filosofia como Deus, a alma e a liberdade, antes de fazer mais uma tentativa de conhecê-los. Sobre esses temas, entendidos como coisas em si mesmas, Kant defendeu que não podemos obter propriamente nenhum conhecimento, embora possamos pensá-los no âmbito da filosofia prática, como exemplifica o uso do conceito de liberdade na ética, considerado aqui.

Este texto é uma adaptação de parte do conteúdo deste vídeo no YouTube em que resolvo uma questão sobre a filosofia kantiana extraída da edição de 2019 do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.

Referências:
Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes [FMC]. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1960.
Kant, I. Crítica da razão prática [CRPr]. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

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