Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

  • Abaixo o resumo e o texto utilizado na apresentação do meu trabalho “Monismo anômalo: as críticas de Jaegwon Kim a Donald Davidson”, que apresentei agora há pouco na VIII Semana Acadêmica da Filosofia UFSM.

    Resumo: Donald Davidson (1970) defendeu uma concepção sobre a relação entre eventos mentais e eventos físicos que ficou conhecida como monismo anômalo. Essa posição defende a tese de que eventos mentais individuais são idênticos a eventos físicos conjuntamente com a tese de que teorias ou predicados mentais são irredutíveis a teorias ou predicados físicos, seja por definição ou por meio de leis empíricas auxiliares. O objetivo de minha apresentação será discutir algumas críticas que Jaegwon Kim dirigiu ao monismo anômalo, especialmente a sua afirmação de que, no monismo anômalo, “eventos são causas ou efeitos somente enquanto instanciam leis físicas, e isso significa que as propriedades mentais de um evento não fazem nenhuma diferença causal” (Kim, 1989, p. 35).

    Handout da apresentação: 
    – As duas teses que constituem o monismo anômalo formulado por Davidson (1970):

    • Eventos mentais individuais são idênticos a eventos físicos (tese da identidade ou do monismo – token identity theory);
    • Conceitos ou teorias psicológicas são irredutíveis – quer via definição ou via leis empíricas auxiliares – a conceitos ou teorias físicas (anomalismo ou irredutibilidade do mental).

    – As premissas a partir das quais Davidson defende o monismo anômalo:

    1. Princípio da interação causal: (ao menos) alguns eventos mentais interagem causalmente com eventos físicos (ver Davidson 1970: 137);
    2. Caráter nomológico da causalidade: a existência de uma relação causal entre dois eventos implica a existência de uma lei causal estrita (138);
    3. Princípio do anomalismo do mental: não há leis causais estritas explicando ou prevendo eventos mentais (138).

    – Como Davidson tenta mostrar que as premissas são consistentes:

    “Causalidade e identidade são relações entre eventos, não importa como descritos. Mas leis são linguísticas; e assim os eventos podem instanciar leis, e portanto ser explicados ou previstos sob a luz de leis, apenas enquanto tais eventos são descritos de uma ou outra maneira. O princípio da interação causal trata extensionalmente dos eventos e é, por isso, cego para a dicotomia mental-físico. O princípio do anomalismo do mental concerne a eventos descritos como mentais, pois eventos são mentais apenas enquanto assim descritos. O princípio do caráter nomológico da causalidade deve ser lido com cuidado: ele diz que quando eventos estão relacionados como causa e efeito, eles têm descrições que instanciam uma lei. Ele não diz que todo enunciado singular de causalidade instancia uma lei” (Davidson 1970: 141-2).

    – A crítica de Kim (1989):

    “O fato é que no monismo anômalo de Davidson a mentalidade [leia-se, as propriedades mentais dos eventos] não desempenha nenhum papel causal. Lembre-se: no monismo anômalo, eventos são causas ou efeitos somente enquanto instanciam leis físicas, e isso significa que as propriedades mentais de um evento não fazem nenhuma diferença causal” (Kim 1989: 35).

    – A crítica de Kim (1993):

    “[O monismo anômalo é compatível com a afirmação de] que eventos com uma ou outra propriedade mental sejam causas de eventos com uma ou outra propriedade física. A dificuldade que tem sido expressa pelos vários críticos […] é precisamente que a verdade dessa asserção não garante a eficácia causal das propriedades mentais” (Kim 1993: 20, itálicos adicionados).

    “Davidson queixa-se que seus críticos tentaram tornar a relação binária da causalidade, ‘c causa e’, em uma relação de múltiplos termos […], possivelmente não extensional, ao empregar aquelas expressões como ‘c qua P causa e qua M’. […] Ele está ansioso por defender a causalidade como uma relação binária extensional, cujos relata são eventos concretos (‘não importa como descritos’). Mas nada disso tem muito a ver com a principal questão em jogo […]. A questão sempre foi a eficácia causal das propriedades dos eventosnão importa como eles, os eventos ou as propriedades, sejam descritos. O que os críticos argumentaram é perfeitamente compatível com a causalidade ser ela mesma uma relação extensional entre dois termos para eventos concretos; a questão deles é que essa relação não é suficiente: precisamos também de uma maneira de falar sobre o papel causal das propriedades, o papel das propriedades dos eventos para gerar, ou fundamentar, essas relações causais de dois termos entre eventos concretos” (20).

    – Duas observações finais:

    1. A objeção que Kim (1989) parece incorreta, porque o monismo anômalo não diz que eventos causam outros eventos em virtude de instanciarem leis de quaisquer tipos. Parece que Davidson não concede nenhuma relevância metafísica especial para o fato de a descrição de uma relação causal poder ser subsumida ou não do enunciado de uma lei causal. (A propósito disso, leis causais são apenas enunciados gerais que podem subsumir enunciados singulares da forma “c causou e”).

    2. As objeções de Kim (1993), por sua vez, parecem reconhecer isso e mostrar o que parece ser a divergência real entre Davidson e seus críticos: ambos têm exigências diferentes sobre o que conta como uma boa teoria da causação mental. Uma teoria da causação mental, vale ressaltar, deve explicar de que modo acontecimentos mentais, como minha intenção de concluir a apresentação deste trabalho, podem causar coisas como os movimentos de várias células e músculos envolvidos na realização da minha ação de ler esta frase final.

    Referências:
    Davidson, D. 1970, “Mental events”. In: Beakley, B. e Ludlow, P. eds. (1992) The philosophy of mind: classical problems/contemporary issues. Cambridge, Mass.: MIT Press, 137-49.

    Kim, J. 1989, “The myth of non-reductive materialism”. In: Proceedings and addresses of the american philosophical association 63, 31-47.

    ____ 1993, “Can supervenience and ‘non-strict laws’ save anomalous monism?”. In: Heil, J. e Mele, A. (eds., 1993) Mental causation. Oxford: Clarendon Press, 19-26.

  • Acabo inserir um texto novo para a página do Monismo Anômalo na Wikipédia. O texto anterior havia sido criado por César Schirmer, e datava de janeiro de 2006. Espero que minha contribuição seja útil aos internautas, assim como a anterior deve ter sido ao longo desses anos.

  • “…Quando não havia distinção clara entre filosofia e ciência, era natural que os filósofos se afirmassem como as pessoas mais aptas a oferecer algo mais próximo da verdade. A concentração na epistemologia, principalmente no momento em que a epistemologia parecia ter sido convocada a fornecer as bases últimas da justificação do conhecimento, encorajou a ideia confusa de que o lugar em que se procuraria as verdades finais e mais básicas, nas quis todas as outras verdades – seja da ciência, da moralidade ou do senso comum – se baseariam, seria a Filosofia. A junção que Platão fez, dos universais abstratos com entidades de valor superior, reforçou a confusão da noção de verdade com as verdades mais elevadas; a confusão é evidente no ponto de vista (que Platão enfim questionou) de que só um exemplar perfeito de universal ou de forma é a forma em si. Assim, só a circularidade (o universal ou conceito) é perfeitamente circular, só o conceito de mão é a mão perfeita, só a verdade é totalmente verdadeira.

    Temos, aqui, uma confusão profunda, um erro de classificação que, aparentemente, foi condenado a prosperar. A verdade não é um objeto, e por isso não pode ser verdadeira; a verdade é um conceito, e é atribuível de modo compreensível a coisas tais como sentenças, pronunciamentos, crenças e proposições, entidades essas que têm um conteúdo proposicional. É um erro pensar que, se alguém procura entender o conceito de verdade, esse alguém está necessariamente tentando descobrir verdades gerais importantes sobre justiça ou sobre os fundamentos da física. O erro permeia até a ideia de que uma teoria da verdade deva nos dizer, de algum modo, o que é verdadeiro, em geral, ou ao menos como descobrir as verdades.

    Não é de estranhar que tenha havido reação! A filosofia prometia muito mais do que ela, ou qualquer outra disciplina, podia dar. A reação de Nietzsche ficou famosa; os pragmáticos americanos também reagiram, só que de outro modo. Dewey, por exemplo, rejeitou de modo bastante adequado a ideia de que os filósofos tinham intimidade com algum tipo especial ou fundamental de verdade, sem a qual a ciência não pudesse progredir. Mas combinou essa modéstia virtuosa com uma teoria absurda sobre o conceito de verdade; visando ridicularizar as pretensões de acesso superior às verdades, ele sentiu necessidade de atacar o próprio conceito clássico. O ataque, à moda da época, assumiu a forma de uma redefinição convincente. Uma vez que a palavra ‘Verdade’ tem uma aura de algo valioso, o truque das definições convincentes é redefini-la de modo que ela seja algo daquilo que se aprovam algo ‘pelo que possamos nos guiar’, frase de Rorty apoiado em Dewey. Desse modo, Dewey afirmou que uma crença ou teoria é verdadeira apenas e tão somente se promover questões humanas.” (Donald Davidson, “Verdade”. In: Livro anual de psicanálise XX, 2006: 275-280)

  • Neste post apresento um recurso didático – ou analogia – que pode ser útil para se ensinar o princípio de não-contradição em aulas iniciais de lógica, seja no ensino médio ou onde for. Assim como uma moeda, numa disputa de cara ou coroa, não pode cair com ambos os lados para cima e ter dois vencedores, também uma proposição (crença ou afirmação) não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente. Abaixo apresento uma caracterização breve do princípio de não-contradição, seguida de exemplos, de uma comparação com o caso da moeda e de uma exemplificação da sua utilidade em certas situações.

    O princípio de não contradição, em sua formulação mais simples, diz que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Uma outra maneira de dizer isso, é dizer que uma proposição e sua negação não podem ser ambas verdadeiras. Vejamos um exemplo:

    (1) Está chovendo.
    (2) Não está chovendo.

    De acordo com o princípio de não contradição, as proposições expressas nas frases (1) e (2) não podem ser ambas verdadeiras ao mesmo tempo: não pode ser verdade ao mesmo tempo que está chovendo e que não está chovendo (uma ou outra, não ambas!).

    Uma maneira de tornar isso um tanto mais concreto é comparar com o jogo de cara ou coroa: se jogamos a moeda para cima, não pode ser que os dois lados caiam para cima. Portanto, não podem haver dois vencedores no jogo: um dos lados vencerá, mas nunca ambos! As proposições também são assim: se “jogamos a proposição contra o mundo”, ela não poderá ser verdadeira e falsa – só um lado pode vencer.

    Uma situação mais concreta onde esse princípio pode ser útil é quando diferentes pessoas ou mesmo teorias fazem afirmações contraditórias. Por exemplo, se um cientista diz a terra é o centro do universo e outro diz que ela não é o centro do universo, então ambos não podem estar falando a verdade. Isso não quer dizer que saibamos qual deles está certo (podemos em algumas situações não ter evidências ou indícios suficientes para decidir uma questão), mas podemos saber de antemão que duas afirmações ou proposições opostas nunca serão ambas verdadeiras. Um caso talvez um pouco mais dramático pode ser a crença em Deus: algumas pessoas acreditam que existe, outras que não. De acordo com o princípio, não pode ser o caso de que ambos os lados estejam falando a verdade. Nesse caso, porém, parece que não temos indícios ou provas adequadas, tanto para um lado como para outro. Mesmo assim, podemos saber com certeza e de antemão que as duas coisas não podem ser ambas verdadeiras: a moeda foi lançada, mas o juiz ainda não destapou para que possamos ver o resultado!

    Obs.: é possível usar a moeda para explicar também o princípio do terceiro excluído. Nas minhas aulas usei uma moeda com um “V” pintado de um lado e um “F” do outro.
    A imagem da moeda é do blog temosnoticias.blogspot.com .

  • O livro Filosofia: um guia para iniciantes (Teichman, J., Evans, K. 2009, Trad. Lucia Sano. São Paulo: Madras) que mencionei no post anterior tem muitas virtudes que o tornam um material atraente para os iniciantes na filosofia:

    1. Ele não inicia com a tradicional e longa tentativa de explicação sobre o que é a filosofia.
    2. Mesmo não cobrindo todos, ou mesmo com exaustão, as diversas áreas da filosofia, o livro apresenta discussões de forma clara e argumentada, enfatizando os problemas filosóficos e o papel da argumentação na busca de respostas para esses problemas.
    3. Não se trata de um livro de história da filosofia. Esta não é deixada de lado, mas fica no seu devido lugar: ela é um pequeno apêndice no final do livro.

    Apesar dessas virtudes, há dois pequenos erros no capítulo “A matéria da lógica”. O trecho que considero problemático é o seguinte:

    “Não importa quão forte o indício, a verdade da conclusão de uma inferência dedutiva não é garantida. Uma inferência dedutiva razoável é compatível com a falsidade de sua conclusão” (p. 195)

    Não sei se o engano foi das autoras ou da tradutora, mas minha sugestão é que as duas ocorrências da palavra “dedutiva” sejam substituídas por “indutiva”.

    Dedução é por definição justamente o tipo de argumento em que a verdade das premissas é incompatível com a falsidade da conclusão. É num argumento indutivo que, mesmo que a verdade das premissas seja assegurada, a falsidade da conclusão é sempre possível. Uma das razões para isso é que a conclusão de um raciocínio indutivo é uma afirmação universal, cujas premissas são particulares (sobre isso conferir A verdade e a falsidade de afirmações universais).

  • Alguns filósofos tentaram fazer uma distinção entre liberdade positiva, a ‘liberdade de fazer…’, e a liberdade negativa, ‘estar livre de…’. […]

    No entanto, parece-nos que a diferença entre ‘liberdade de fazer…’ e ‘estar livre de…’ não é de grande importância filosófica, em parte porque ‘liberdade de fazer…’ e ‘estar livre de…’ são frequentemente dois lados de uma mesma moeda. Assim, em um contexto social ou político, ‘estar livre de censura’ significa o mesmo que ‘liberdade de fazer e escrever o que quiser’; ‘estar livre de opressão religiosa’ significa o mesmo que ‘liberdade para venerar o deus como bem entender ou não venerar’.

    Em resumo, a principal diferença entre a ‘liberdade de fazer…’ e ‘estar livre de…’ é apenas verbal.

    A citação acima está na pp. 127-8 de:
    Teichman, J., Evans, K. Filosofia: um guia para iniciantes, Trad. Lucia Sano. São Paulo: Madras, 2009.

  • Eu tenho me convencido ultimamente que ensinar um conjunto mínimo de noções de filosofia da linguagem e de lógica no Ensino Médio pode bem ser a melhor maneira de promover o tão esperado senso crítico ou educação para a cidadania. E isso se deve justamente ao caráter formal, abstrato ou desprovido de conteúdo desses conhecimentos. Aprender essas noções mínimas de lógica e filosofia da linguagem não é aprender um conjunto de verdades, que a partir de então seriam aceitas como incontestáveis. Não! Aprender essas noções mínimas é essencialmente uma questão de adquirir um conjunto de técnicas, instrumentos ou habilidades que podem ser aplicados a toda e qualquer pretensão de verdade que tenhamos em nossas vidas diárias.

    Um conjunto de esclarecimentos que penso serem do tipo que mencionei acima diz respeito às condições de verdade de afirmações universais. Quero considerar aqui afirmações do tipo:

    1. “Todas os casos de aborto são moralmente errados”; e
    2. “Nenhum político é sincero”.

    Essas afirmações são chamadas universais por dizerem algo acerca de todas as coisas de um certo tipo – políticos, abortos etc. A afirmação (1), por exemplo, diz que todo e qualquer caso de aborto é moralmente errado; a afirmação (2) é universal (porém negativa) por dizer que todo e qualquer político não é sincero.

    Falar das condições de verdade de uma afirmação é falar sobre as condições que, se preenchidas, mostrariam que ela é verdadeira ou falsa. No caso das afirmações universais é mais fácil falar primeiro das condições em que elas são falsas.

    Voltemos aos exemplos. Para que a afirmação (1) seja falsa basta que exista um único caso de aborto que não seja moralmente errado. Temos vários exemplos disso: casos de aborto em que a concepção foi resultado de estupro ou (se você não concorda com esse caso) abortos espontâneos não são moralmente errados. Portanto, a afirmação (1) é falsa.

    No caso da afirmação (2), também é mais fácil dizer em que caso ela seria falsa. Para que (2) seja falsa basta existir um único político que é sincero. (2) diz que todos os políticos não são sinceros e, portanto, um único caso de político que é sincero mostra que (2) é falsa. Assim, se você conhece um político sincero, então você não pode tomar por verdadeira a afirmação (2).

    Agora, em que casos seriam verdadeiras as afirmações universais? Se uma afirmação universal é verdadeira, isso implica que entre todas coisas ou indivíduos sobre os quais ela fala não existe nenhum que contradiga o que é afirmado sobre eles. Por exemplo, para que fosse verdadeira a afirmação (1), não poderia existir nenhum caso de aborto que fosse moralmente aceitável. Para que (2) fosse verdadeira, também, não poderia haver um único político sequer que fosse sincero.

    A grande dificuldade em estabelecer a verdade da maioria das afirmações universais é que nossas capacidades de conhecimento (ou cognitivas) não conseguem varrer todos os casos abrangidos e conferir se estão de acordo com o que é dito a seu respeito. Estabelecer a verdade delas exigiria percorrer todo um grupo de indivíduos – os abortos ou os políticos, por exemplo – e constatar que ali não existe nenhum caso que contradiga o que foi afirmado sobre eles – que todos os casos de aborto investigados são errados e que cada um de todos os políticos investigados não é sincero.

    O problema é que em muitos casos isso é praticamente irrealizável. Em muitos casos as afirmações universais falam de coisas que não estão acessíveis a nós. Isso pode se dar quando ela fala sobre casos passados ou futuros que não estão mais, ou ainda, acessíveis (ex: “Nenhum dinossauro tinha cinco pernas”), quando ela fala sobre coisas às quais não temos acesso (ex: “Todas as galáxias têm buracos negros”) entre outros casos.

    Um fato curioso é que a maioria dos preconceitos são sustentados de maneira universal. Sendo assim, temos agora a chave para combatê-los: basta encontrar um único caso que contradiga a afirmação universal. É por isso, também, que é prudente conferir o estatuto de hipótese à grande maioria das afirmações universais. Geralmente não temos em mãos todos os casos que precisaríamos investigar a fim de estabelecer a verdade de uma afirmação universal. Isso implica que não estamos livres de encontrar em breve um caso mostrando que uma afirmação universal é falsa e precisa ser abandonada.

  • Esclarecimento: a filosofia tornou-se recentemente obrigatória no Ensino Médio do país. Para se adequar a essa nova realidade estão sendo lançados no mercado diversos materiais para essa demanda nova. Abaixo comento dois problemas graves no livro Filosofia para o Ensino Médio de Maria Luiza Silveira Teles, publicado pela Editora Vozes em 2010. Enquanto leitor e futuro professor de filosofia, sinto-me no dever de não deixar passar em branco o tipo de erro que aponto abaixo.

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    1. Sobre o que é a filosofia:

    Na página 33 há uma afirmação que, apesar de não ser uma falsidade evidente, requereria no mínimo uma defesa elaborada, visto não ser, de longe, a concepção mais usual a respeito do que seja a filosofia:

    A filosofia é uma ciência empírica porque se baseia principalmente na observação. Este, portanto, seria o método básico” (p. 33).

    Essa afirmação, sem mais, é lamentável. Só pode confundir a cabeça de um aluno que está tendo os primeiros contatos com a filosofia. Uma maneira mais caridosa de ler essa passagem seria considerar que a palavra “não” foi ali esquecidduas vezes. Desse modo, leríamos que a filosofia não é uma ciência empírica e não se baseia na observação. A observação não é o método básico da filosofia. Essa correção seria condizente com o que a autora afirmou em parágrafos precedentes:

    … a discussão em Filosofia […] tem de ser um levantamento de hipóteses, com respostas lógicas. […] Nas ciências, de um modo geral, costuma-se usar o método científico, que começa com a observação rigorosa […]. Isso, porém, não é possível em Filosofia, já que lidamos somente com ideias, conceitos” (p. 33).

    Essas afirmações são aceitáveis e, assim, só temos que lamentar que três ocorrências da palavra “não” tenham passado despercebidas na revisão do material antes da publicação – se é que foi isso que aconteceu. Tal como está, entretanto, esse material não atende os mínimos requisitos para apresentação ao público leigo ao qual é dirigido, pois não pode conduzir a outra coisa que não confusão e erros.

    2. Lógica, proposições, validade:

    Um outro conjunto de erros inadmissíveis é apresentado no capítulo 2. Seu título é “O pensamento lógico”. O capítulo inicia com uma definição de silogismo e apresenta dois exemplos:

    [Silogismo] é uma conclusão razoável e lógica que se baseia em duas proposições ou premissas verdadeiras. […]:

    Pedro é homem
    Todo homem é mortal
    Logo, Pedro é mortal. […]

    Todos os negros são pessoas
    Napoleão era uma pessoa
    Logo, Napoleão era negro “ (p. 19)

    Logo em seguida, são apresentados dois princípios da lógica clássica, o de não-contradição e o do terceiro excluído. Os erros aparecem logo na sequência, na avaliação dos argumentos apresentados como exemplos:

    Podemos representar proposições por meio de frases (como já fizemos no início do capítulo) ou símbolos. Uma cadeia que forma uma expressão válida (isto é, que ofereça um valor falso (F) ou verdadeiro (V) de retorno) é chamada de fórmula bem formulada.
    Assim, o primeiro exemplo de silogismo que apresentamos é uma fórmula bem formulada. Já o segundo exemplo não é uma fórmula bem formulada, pois leva a uma conclusão falsa.
    Esclarecendo, proposição é uma sentença declarativa, afirmativa, que pode assumir o valor de verdadeiro (V) ou falso (F)” (p. 20).

    É difícil imaginar uma leitura caridosa para esse trecho. Em primeiro lugar, a caracterização oferecida entre parênteses é mais adequada ao que usualmente chamamos de proposição. Tal como está, entretanto, essa caracterização contradiz a avaliação dos exemplos, o primeiro como bem formulado e o segundo como não bem formulado. Mas, por outro lado, essa avaliação sugere que a autora não pretendia caracterizar a noção de proposição, mas, sim, a noção de validade.

    Mas, se ela de fato pretendia caracterizar a noção de validade, temos ainda problemas. Para corrigi-los teríamos de, em primeiro lugar, excluir o que está entre parênteses (porque caracteriza proposição e não validade). Em seguida, é preciso aprimorar a caracterização de validade. Um argumento é válido se ele garante que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também será verdadeira (pode-se chamar isso de a conclusão seguir-se das premissas). Assim, a validade de um argumento independe do valor de verdade real das premissas e da conclusão, pois garante apenas que a conclusão é verdadeira em todas (e apenas) as situações em que as premissas são verdadeiras. Disso não se segue que as premissas ou a conclusão sejam, de fato, verdadeiras. Com esses ajustes, poderíamos agora classificar o primeiro exemplo como válido e o segundo como inválido. No primeiro caso a conclusão segue-se das premissas; no segundo não.

    Diante de tamanha confusão, vê-se que esse definitivamente não é um bom material para os estudantes de filosofia do nosso país. É uma pena que os editores tenham permitido a publicação de um material nessas condições e poderíamos ironizar dizendo que talvez tenham (mais uma vez) “apenas” esquecido a palavra “não”: neste caso o “não” do título do capítulo, que poderia ser chamado “O pensamento não-lógico”.

  • O texto seguinte é uma citação de Fearn, N. Filosofia: novas respostas para antigas questões, trad. Maria Borges. Zahar: Rio de Janeiro, 2006, p. 189-90 (A citação de R. M. Hare é do texto “Nothing Matters”, em Applications of Moral Philosophy, Londres: Macmillan, 1972).

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    O filósofo de Oxford R. M. Hare, morto em 2002, gostava de contar a história de como um adolescente suíço hospedado em sua casa havia mudado de repente de sua disposição normalmente alegre para uma depressão mórbida. Hare sentiu-se compelido a agir depois que o menino parou de comer, começou a vagar pelo campo após o anoitecer e, de maneira muito sintomática, “nos surpreendeu uma manhã pedindo cigarros – até então, nunca havia fumado”. A influência da filosofia francesa era inconfundível e, de fato, veio a se saber que o jovem hóspede havia sofrido um choque psicológico uma noite após ler O estrangeiro, do existencialista Albert Camus. Como Mersault, o herói do magnífico romance, ele havia concluído que “nada importa”. A cura foi simples, Hare escreveu:

    Meu amigo não havia compreendido que a função da palavra “importar” é expressar interesse; ele havia pensado que importar era algo (alguma atividade ou processo) que as coisas faziam, mais ou menos como falar; como se a frase “Minha mulher me importa” fosse similar em função lógica à frase “Minha mulher me diz”. Se pensamos assim, podemos começar a nos perguntar que atividade é essa, chamada importar; e podemos começar a observar o mundo atentamente (ajudados talvez pelas descrições claras e frias de um romance como o de Camus) para ver se conseguimos perceber alguma coisa fazendo algo que possa ser chamado de importar; e quando não conseguimos observar nada acontecendo que pareça corresponder a essa palavra, é fácil para o romancista nos convencer de que, afinal de contas, nada importa. A resposta para isso é que “importar” não é uma palavra desse tipo; ela não se destina a descrever algo que as coisas façam, mas a expressar nosso interesse pelo que elas fazem; assim, é claro que não podemos observar as coisas importando, mas isso não significa que elas não importem… Meu amigo suíço não era um hipócrita. O problema dele era que, por ingenuidade filosófica, tomou por um problema moral real o que não era absolutamente um problema moral, mas um problema filosófico – um problema a ser resolvido não por uma luta dolorosa com sua alma, mas por uma tentativa de entender o que ele estava dizendo.

    Livro:
    Fearn, N. Filosofia: novas respostas para antigas questões: ver na Livraria Cultura.

  • A seguinte apresentação de Alindro Conval foi fornecida por ele mesmo em uma entrevista de emprego em 1998:

    – “Olá, eu adoraria ser contratado para a vaga. Entretanto, eu sofri um acidente há 2 anos e fiquei com a seguinte anomalia psíquica: tudo o que eu falo é mentira”.

    Quando ocorreu o acidente de Alindro Conval?

    Links relacionados:
    Crítica – Paradoxos
    SEP – Liar Paradox