Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

  • Devido à panemia, a instituição onde leciono permaneceu por praticamente dois anos inteiros ensinando apenas remotamente. Seguem algumas impressões a respeito de como o ensino a nível médio se comportou nesse período.

    Antes de retornar ao ensino presencial, pensei em registrar aqui algumas notas que poderiam ser úteis para pensar sobre o ensino remoto. Não havia nada grandioso, mas algumas percepções como as seguintes:

    • A qualidade do áudio (um microfone adequado) é mais importante que a qualidade do vídeo para aulas síncronas e videoaulas.
    • Os alunos não costumam assistir videoaulas longas em sua integralidade. Vídeos curtos, entre 10-20 minutos, ou mesmo muito curtos, têm mais chances de serem assistidos.
    • É improvável que um material de aula (vídeo, texto etc.) seja estudado a menos que haja um teste de compreensão avaliativo a respeito dele. Atividades avaliativas curtas semanais parecem mais efetivas do que avaliações concentradas menos frequentes.
    • Uniformidade na forma de entrega e organização das atividades de diferentes disciplinas é essencial. Em nosso caso específico, entregamos roteiros semanais que incluíam a lista de disciplinas a serem lecionadas na semana, os horários das atividades síncronas, os materiais de aula e as atividades avaliativas com seus respectivos prazos.
    • O acesso e assiduidade dos alunos em maior vulnerabilidade ou baixo aprendizado é um dos maiores desafios. Em nosso caso, muitos alunos deixaram de comparecer ou realizar as atividades.
    • A cola é frequente e difícil de controlar. Sistemas com sorteio de questões, capazes de gerar atividades diferentes para cada aluno, ajudam, bem como atividades de produção que exijam um material único (produção de texto ou vídeo, por exemplo).

    Após um semestre de retorno à modalidade presencial, noto (ou relembro de) alguns pontos:

    • Os docentes precisam empenhar uma grande quantidade de energia em questões marginalmente relacionadas ao aprendizado em sentido estrito: motivação e cobrança de empenho, gerenciamento de inadequação comportamental, em sala e fora dela. No ensino remoto, esse tipo de problema não é visível ao docente.
    • Grande parte dos alunos voltou do ensino remoto com muitas lacunas de aprendizagem e em habilidades básicas, tanto cognitivas quanto de socialização. No aspecto cognitivo, em especial, penso que uma analogia com o exercício físico é adequada: uma pessoa que, estando em uma rotina de exercícios de musculação, ficasse parada por um longo período, voltaria à atividade não mais no estágio de desenvolvimento em que parou; teria regredido.
    • Alguns alunos apresentam dificuldades de interação, especialmente com pares que são diferentes em suas atitudes, valores ou opiniões. A escola presencial oferece um espaço de interação com a diferença que permite exercitar habilidades que fora dali talvez não sejam tão intensamente exercitadas.
    • O uso de celulares está fora do controle dos alunos e dos próprios pais. O equipamento foi útil, apesar dos seus problemas, durante a pandemia, mas a sala de aula é um dos poucos lugares onde se tem chance de proteger um tempo para o ócio criativo, a concentração genuína e o pensamento aprofundado.
    • Minha instituição de trabalho não organizou-se à altura do que este episódio da história da educação e da humanidade exigia: se alguém tivesse ido dormir em 2019 e acordasse em 2022 para ir à escola, perceberia como diferença apenas o uso da máscara. Os currículos, os horários, as ementas e tudo o mais permaneceram tal e qual. Algumas tentativas de resposta estão sendo feitas à medida que os problemas aparecem, mas certamente se poderia ter pensado alternativas que fossem excepcionais em nível próximo aos problemas que a pandemia gerou.
  • “Derk Pereboom e Gregg Caruso argumentam que os seres humanos nunca são moralmente responsáveis por suas ações e adotam essa tese como ponto de partida para um projeto cujo fim último é a reforma das práticas de responsabilização, as quais incluem elogios, reprovações e a punição na esfera legal. Este artigo compartilha da preocupação cética de que as práticas de responsabilização atuais podem ser imperfeitas e necessitarem de modificações, mas argumenta que uma busca não-cética dessas modificações é viável e mais promissora. As linhas principais do argumento são desenvolvidas mediante uma avaliação das possibilidades de implementação de uma das mudanças defendidas no interior do projeto cético (a saber, a redução da severidade da punição) à luz de como a psicologia moral humana funciona. Um estudo experimental original (N = 180; participantes oriundos de grupos de Facebook relacionados a universidades brasileiras) pediu aos participantes para recomendar uma sentença para um criminoso fictício depois de considerar alternativas à punição regular que variaram em sua efetividade em prevenir a reincidência. Os resultados sugerem que as pessoas podem se tornar menos punitivas mesmo se continuarem a acreditar na responsabilidade moral e no livre-arbítrio. O artigo também argumenta que é mais provável que a reforma das práticas de responsabilização aconteça sem a aceitação do ceticismo.”

    Este é o resumo de meu artigo “Reforming responsibility practices without skepticism” publicado recentemente na Philosophical Psychology. (A versão aceita permanecerá com acesso livre aqui).

  • Este é um desabafo, mais do que um argumento, que me sinto obrigado a fazer na condição de integrante das engrenagens que entendo estarem corroídas. (Os raciocínios estão guardados, caso alguém queira ouví-los, mas no geral é um assunto desconfortável de se discutir aberta e detalhadamente). Duvido que as maiores figuras que deram forma à tradição filosófica que chegou até nós poderiam ser valorizadas nos estágios iniciais de suas carreiras em boa parte das instituições de ensino e pesquisa de nosso país. Kant, Gadamer, Anscombe, Davidson, Nussbaum, após obterem o título de doutor em filosofia, correriam o risco de ficarem pra trás se concorressem com alguém que tivesse decidido completar seu currículo com publicações no jornalzinho da esquina. A burocratização da avaliação acadêmica sacrifica a discriminação pela qualidade e valoriza cegamente a quantidade, às vezes mais e às vezes menos diretamente. Um dos efeitos mais nocivos dessa prática é estimular os mais jovens (ou melhor, os desempregados) a imitarem as mesmas práticas tortas, em um cenário cada vez mais competivo e desafiador. Outro, o mais sério do ponto de vista do investimento público, é que nossas instituições deixam de atingir o potencial que poderiam. Como as revisões institucionais tendem a ser produzidas internamente, é duvidoso que um grupo suficientemente numeroso, dentre aqueles que entraram pelo mesmo caminho aqui criticado, terá o entendimento e a motivação necessários para promover qualquer mudança. É um autoexame que precisa ser feito: é preciso refletir sobre se os parâmetros ora utilizados estão produzindo os resultados que deveriam. Como passo inicial, poderíamos fazer, em cada instituição, a seguinte pergunta: como se sairiam em nossos processos de seleção aqueles que consideramos grandes representantes da profissão, aqueles com quem ocupamos nossas aulas? O que os distinguia antes de terem já produzido aquilo que lhes fez serem agora reconhecidos?

  • Estão abertas as inscrições para uma vaga para professor substituto de filosofia para atuação no Campus Santo Ângelo do Instituto Federal Farroupilha. O edital também prevê vagas para as áreas de biologia, enfermagem, informática, letras e matemática. As inscrições vão até às 12h00 do dia
    15/12/2021.

  • Estão abertas as inscrições para a NYU Annual High School Philosophy Conference. O evento abordará a importância da filosofia no ensino médio e como pode ser aplicada à vida em geral, sendo destinado a estudantes do ensino médio.

    O evento acontece via Zoom a partir de 18 de setembro. Detalhes do evento estão disponíveis neste endereço e as inscrições podem ser feitas gratuitamente aqui.

  • Eis um desafio de lógica proposicional que elaborei para meus alunos:

    1. Se tomarmos chá, então assistiremos a um filme.
    2. Se tomarmos café, então assistiremos novela.
    3. Não faremos ambos, assistir a um filme e assistir novela.
    4. Tomaremos café.

    Pergunta: Tomaremos chá?

    Fique à vontade para comentar e discutir a solução do enigma. Ele foi inspirado neste material.

  • Acabo de descobrir o canal de Daniel Bonevac no YouTube. Bonevac é professor de filosofia na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos. A vivacidade, clareza e variedade de assuntos de suas aulas são qualidades raras, que lhes tornam um material atrativo para quem está interessado em materiais a nível de graduação em inglês.

    As aulas cobrem os assuntos mais variados, incluindo Ética das Organizações, Filosofia Anaĺítica, Introdução à Filosofia, entre outros. Abaixo incluí como amostra uma aula sobre como Hegel responde a Kant, um tópico que, na minha experiência, é mais fácil contornar do que abordar.

    Daniel Bonevac sobre Hegel e Kant
  • “Bandos LPA [i.e. bandos humanos provavelmente similares aos existiram entre 126 mil e 11 mil anos atrás] não têm indivíduos dominantes de tipo alfa. Naqueles casos em que há um líder reconhecível, seu papel—o líder é quase sempre um homem adulto—é apenas o de facilitar e proteger a coesão social, frequentemente sendo um ‘condutor da redistribuição’ de recursos importantes, incluindo alimentos e liberdade (Graeber 2011). Frequentemente o líder é o membro mais pobre do bando e se espera que seja mais generoso, cooperativo e modesto do que os demais, e que julgue brigas e desacordos de modo que sejam resolvidos rapidamente e de uma maneira percebida como justa e adequada pela grande maioria do grupo. Não apenas potenciais tipos-alfa são excluídos da liderança, mas os membros de bandos LPA rapidamente formam coalizões grandes e potencialmente agressivas contra membros agressivos [bullies] que tentem controlar suas vidas e recursos.”

    Esta é uma tradução minha de uma passagem do artigo A carne fez a ética (minha tradução grosseira de “Meat made us moral”) de Matteo Mameli, publicado na revista Biology and Philosophy (pp. 919-920).

  • Eis um apanhado de passagens onde a filosofia é mencionada na BNCC (Base Nacional Curricular Comum).

    Algumas passagens desempenham a função de inserir a filosofia na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas:

    “A área de Ciências Humanas, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio, define aprendizagens centradas no desenvolvimento das competências de identificação, análise, comparação e interpretação de ideias, pensamentos, fenômenos e processos históricos, geográficos, sociais, econômicos, políticos e culturais. Essas competências permitirão aos estudantes elaborar hipóteses, construir argumentos e atuar no mundo, recorrendo aos conceitos e fundamentos dos componentes da área. No Ensino Médio, com a incorporação da Filosofia e da Sociologia, a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas propõe o aprofundamento e a ampliação da base conceitual e dos modos de construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados
    com base em procedimentos analíticos e interpretativos. Nessa etapa, como os estudantes e suas experiências como jovens cidadãos representam o foco do aprendizado, deve-se estimular uma leitura de mundo sustentada em uma visão crítica e contextualizada da realidade, no domínio conceitual e na elaboração e aplicação de interpretações sobre as relações, os processos e as múltiplas dimensões da existência humana.” (p. 472)

    Como consta (p. 476), filosofia faz parte das aprendizagens essenciais do ensino médio.

    Sobre a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, como algumas outras, a BNCC faz a “definição
    de competências específicas de área e habilidades que lhes correspondem.” (p. 33). O destaque é para o fato de que as competências são definidas para áreas, e não para disciplinas (com a exceção de Língua Portuguesa, que é parte da área de Linguagens e suas Tecnologias, mas tem a definição de habilidades específicas, e para Matemática, que forma sozinha a área de Matemática e suas Tecnologias).

    “A BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental, sempre orientada para uma formação ética. Tal compromisso educativo tem como base as ideias de justiça, solidariedade, autonomia, liberdade de pensamento e de escolha, ou seja, a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos de qualquer natureza.” (561)

    A filosofia aparece ainda relacionada ao conceito de “tempo”, que por sua vez aparece no contexto de conteúdos sobre as origens das diversidades sociais e culturais:

    “Definir o que seria o tempo é um desafio sobre o qual se debruçaram e se debruçam grandes pensadores de diversas áreas do conhecimento. O tempo é matéria de reflexão na Filosofia, na Física, na Matemática, na Biologia, na História, na Sociologia e em outras áreas do saber.” (p. 563)

    A filosofia aparece novamente com os temas “política” e “trabalho”:

    “A política está na origem do pensamento filosófico. Na Grécia Antiga, o exercício da argumentação e a discussão sobre os destinos das cidades e suas leis estimularam a retórica e a abstração como práticas necessárias para o debate em torno do bem comum. Esse exercício permitiu ao cidadão da pólis compreender a política como produção humana capaz de favorecer as relações entre pessoas e povos e, ao mesmo tempo, desenvolver a crítica a mecanismos políticos como a demagogia e a manipulação do interesse público. A política, em sua origem grega, foi o instrumento utilizado para combater os autoritarismos, as tiranias, os terrores, as violências e as múltiplas formas de destruição da vida pública.” (p. 567)

    “A categoria trabalho, por sua vez, comporta diferentes dimensões – filosófica, econômica, sociológica ou histórica: como virtude; como forma de produzir riqueza, de dominar e de transformar a natureza; como mercadoria; ou como forma de alienação.” (p. 568)

    A filosofia é ainda mencionada explicitamente em na habilidade EM13CHS101 e EM13CHS103 da Competência Específica 1, que centra-se em “processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais“:

    “(EM13CHS101) Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais.” (p. 572)

    “(EM13CHS103) Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros).” (p. 572)

    A filosofia aparece na redação da Competência Específica 5:

    “Identificar e combater as diversas formas de injustiça, preconceito e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos.

    O exercício de reflexão, que preside a construção do pensamento filosófico, permite aos jovens compreender os fundamentos da ética em diferentes culturas, estimulando o respeito às diferenças (linguísticas, culturais, religiosas, étnico-raciais etc.), à cidadania e aos Direitos Humanos. Ao realizar esse exercício na abordagem de circunstâncias da vida cotidiana, os estudantes podem desnaturalizar condutas, relativizar costumes e perceber a desigualdade, o preconceito e a discriminação presentes em atitudes, gestos e silenciamentos, avaliando as ambiguidades e contradições presentes em políticas públicas tanto de âmbito nacional como internacional.” (p. 577)

    Este apanhado de citações não é uma leitura sistemática e exaustiva do lugar da filosofia na BNCC. Antes, trata-se de uma leitura “sintática”, guiada pelas ocorrências da palavra “filosofia” e similares no texto da BNCC. Ainda assim, talvez serva como uma primeira aproximação do lugar planejado para a disciplina no contexto do ensino médio brasileiro: pode-se ver pelos negritos (que, a propósito, não devem ser pensados como exclusividades para o professor de filosofia) que há menção de práticas caras à filosofia (como argumentação, dicussão e análises “críticas”), mas que as temáticas tratadas tendem a se concentrar em aspectos de filosofia prática, não comtemplando de maneira equilibrada o conjunto de temas costumeiramente vinculado à disciplina (a análise dos livros didáticos agora em oferta, elaborados para contemplar a BNCC, também revela que os instrumentos típicos da filosofia no âmbito da argumentação estão em grande medida ausentes.) Além disso, transparece uma expectativa de que a filosofia possa entregar diretivas de uma maneira que pode causar estranheza aos que se acostumaram ao caráter indecidido das discussões filosóficas. Ficam dúvidas sobre se a filosofia pode entregar diretivas sem trair seu caráter de abertura à crítica e discussão. Também se pode questionar sobre que visão sobre a filosofia é possível montar a partir de uma tentativa de reconstruí-la exclusivamente a partir das peças disponibilizadas pela base.