Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

  • Aí teríamos a implementação de uma BNCC ocorrendo ao mesmo tempo em todas as escolas do país, tal como se encaminha neste momento.

    Por que testar uma vacina em todo mundo—o que, na prática, equivale a aplicá-la sem teste algum—é problemático? Porque não há como saber, a priori, quais serão os efeitos da intervenção, inclusive se terá (e qual será) a eficácia. Trata-se, obviamente, de uma questão empírica. Por que, então, parece aceitável fazer uma intervenção deste tipo no âmbito da educação? Para saber se a intervenção é boa, deveríamos poder comparar seus efeitos, inclusive em diferentes contextos, e poder compará-los com o modelo atualmente vigente. Obviamente, que efeitos almejamos é uma questão política, me sentido amplo, que diz respeito às nossas ambições. Mas sejam quais forem as pretensões, não é razoável buscá-las sem consultar em alguma medida a realidade.

    No âmbito da filosofia, e julgando em parte pelos livros didáticos disponibilizados para escolha que pude consultar até o momento, parece haver uma discrepância bastante grande em relação às possibilidades de abordagem da disciplina usualmente consideradas e o que é oferecido, tanto nos temas quanto no modo. Em um dos exemplares disponíveis, a filosofia parece ser o palco de um desfile de opiniões, sem qualquer respeito ao lugar que a argumentação e a reflexão cuidadosas ocupam no seu exercício—e, portanto, tornando duvidoso que o material possa ajudar no ensino dessas habilidades aos estudantes.

    Este é um comentário/desabafo provisório. Ficaria muito agradecido se algum visitante deste blog pudesse compartilhar suas impressões sobre o tema, especialmente comentários que pudessem ajudar a pautar a seleção dos livros atualmente sobre a mesa.

  • “O ensino médio universal promoveu não apenas o crescimento dos americanos, ao difundir o conhecimento e habilidades relevantes junto às massas. Ele também deu origem a uma transformação social e cultural mais complexa, à medida que o período adolescente tornou-se central para moldar quem somos. O fato é que o ensino médio envolve, e sempre envolveu, mais do que apenas o ensino […] foi a dimensão social da experiência do ensino médio, não a educacional, que foi crucial para os adolescentes. Trancafiados juntos no ambiente da escola, os adolescentes ocuparam um espaço social separado e distinto, em grande medida imune à influência adulta.”

    “Esta evolução rápida no comportamento refletia uma transformação mais profunda: o caráter das gerações em formação, seus valores, temperamento e características, foram sendo transformadas pela influência poderosa dos pares durante os anos formativos da adolescência. Desejos hedonistas eram mais abertamente expressos, atividades prazerosas mais livremente realizadas. A autodisciplina [conscientiousness] foi minimizada, as normas sociais tratadas com crescente ceticismo e desdém. A impulsividade e as emoções foram mais comumente exaltadas, um espírito aventureiro e aberto amplamente endossado.”

    “Estes traços de caráter joviais serviram para nos tornar mais toleranes e generosos em muitos aspectos. A tolerância crescente a grupos marginalizados pode ser parcialmente atribuída a esta mentalidade jovial emergente”.

    “Mas houve um inconveniente inegável na história também. Muitos autores mapearam o crescimento pernicioso da impulsividade, incivilidade e a arrogância egoica [me-first] em diferentes setores da vida dos Estados Unidos — social e cultural, econômico e político.”

    Estas são palavras do professor de Ciência Política Paul Howe, traduzidas a partir deste artigo no Aeon. A hipótese toda é ousada, mas também interessante. Remete certas atitudes “infantilizadas” na cultura atual dos Estados Unidos (incluindo na esfera política) no fim das contas ao acesso universal ao ensino médio e à criação, ali, de uma cultura adolescente. A hipótese é curiosa, entre outras coisas, porque implica que os traços de personalidade minimizados ao longo das gerações acabam por ter seu efeito contemporâneo mais saliente em uma forma extremada de expressão justamente do perfil ideológico mais associado a eles. Além disso, convida o pensamento sobre se o fenômeno pode ser observado em outros países, especialmente no Brasil; o autor nota que os Estados Unidos foram pioneiros na universalização do ensino médio, já no final da década de 1930. Finalmente, permite uma reflexão sobre a configuração e impacto da própria escola na formação das novas gerações (ou ainda, sobre a interação entre gerações que ocorre na escola e o papel que os adultos precisam ocupar aí), tópico que já vem sendo abordado por outros estudiosos do assunto.

  • Um dos efeitos que a pandemia de covid-19 produziu no âmbito da educação foi a aceleração da ocupação de espaços digitais por professores das mais variadas áreas do conhecimento e níveis de ensino. Por mais de uma vez ensaiei preparar um compilado dos vários materiais, especialmente em formado de vídeo, que foram produzidos na área de filosofia. Por ainda não ter conseguido levar a cabo a tarefa, divulgo por ora um conjunto de videoaulas de ótima qualidade produzidas por um professor de filosofia português.

    Rolando Almeida ensina filosofia no nível secundário (aproximadamente nosso ensino médio) em uma escola pública da Ilha da Madeira, em Portugal, e também mantém um blog dedicado à divulgação e ao ensino da filosofia. Em 2020, ele gravou um conjunto de aulas de filosofia que foram transmitidas pelo canal de TV RTP Madeira. As aulas foram também disponibilizadas no YouTube.

    Rolando Almeida na primeira aula de Filosofia da Arte (que inclui também uma revisão inicial sobre argumentação).

    Entre as videoaulas disponíveis, há uma sequência de aulas sobre ética (aula 1, aula 2, aula 3, aula 4), sobre filosofia da religião (primeira, segunda, terceira, quarta e quinta) e sobre filosofia da arte (aula 1, aula 2, aula 3, aula 4). Uma lista completa das aulas está disponível nesta página.

    As aulas seguem as diretrizes curriculares portuguesas, mas penso que podem contribuir bastante com os estudos de estudantes brasileiros, além de permitirem um benéfico contato com um ambiente cultural e de ensino levemente diferente do nosso.

  • Há uma excelente e inspiradora entrevista com o professor Ronai Rocha no Podcast Todavia. Ronai Rocha é professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de Santa Maria. Além de relembrar aspectos do funcionamento do departamento e da pesquisa em filosofia a partir da década de 1970, a entrevista aborda temas relacionados ao ensino de filosofia e, de uma maneira especialmente interessante, lança sementes para uma inserção mais ampla da filosofia na cultura brasileira.

    Ronai Rocha no Podcast Todavia (YouTube).

    Entre outros, Ronai Rocha é autor dos livros Ensino de Filosofia e Currículo, Quando Ninguém Educa e Escola Partida. Os livros (e outros em elaboração) são mencionados na entrevista, mas também foram objeto de outras entrevistas e textos de divulgação nos últimos anos (ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui).

    O Podcast Todavia está disponível também no YouTube.

  • O doutorado tende a ser o estágio profissional que permite a dedicação da maior quantidade de tempo à pesquisa (cerca de 70% do tempo de trabalho). Quem entra na carreira docente e avança por ela, tende reduzir para cerca de 20% o tempo dedicado à pesquisa. Ao menos é o que o estudo descrito aqui sugere; também vale a pena conferir algumas sugestões de como reservar um tempo para a pesquisa em meio às demais exigências profissionais.

  • Na última sexta-feira tive a alegria de participar como entrevistado do Podcast Todavia, uma iniciativa do Departameto de Filosofia da UFSM sob coordenação do professor Eduardo Vicentini de Medeiros e com a participação de Isadora Gabriel Hoff, Leandro Santos de Araújo e Luiza Moscato Soares.

    Na entrevista, falei sobre minha trajetória na UFSM, minha formação em filosofia, alguns aspectos de minha pesquisa sobre responsabilidade moral, sobre a pesquisa em filosofia de um modo geral, sobre o ensino de filosofia no ensino médio e também sobre o cenário profissional na filosofia. A entrevista está disponível também no Spotify e no YouTube.

  • Estão abertas as inscrições para ouvintes para o III Colóquio Internacional de Filosofia da Neurociência: Livre-arbítrio, agência e implicações éticas, que ocorrerá online entre 21 e 25 de junho deste ano.

    Participarei com uma apresentação [gravação aqui] sobre as diferentes maneiras em que a neurociência poderia acarretar mudanças em nossas práticas de responsabilização, examinadas principalmente quanto à sua plausibilidade dada a psicologia moral humana e o modo como tendemos a responsabilizar uns aos outros. Mas, mais importante do que isso, participarão nomes consagrados da filosofia da neurociência internacional e brasileira!

    Adendo: O evento está sendo transmitido também no YouTube. As gravações também ficam disponíveis posteriormente.

  • Minha experiência no interior de uma instituição de ensino tem me feito acreditar cada vez mais na verdade da passagem que traduzo abaixo—o que é paradoxal, visto que uma das tarefas principais da escola é justamente levar uma seleção do conhecimento científico acumulado pela humanidade às novas gerações:

    “A conexão entre indícios [evidence] e prática na educação está em grande contraste com a que há, por exemplo, na medicina, onde os medicamentos e tratamentos mais variados que provaram, em experimentos rigorosos, que podem curar ou prevenir doenças são geralmente adotados em grande escala pelos profissionais da área. As rápidas e bem sucedidas avaliações de vacinas para Covid-19 realizadas recentemente estão em alta no noticiário neste momento, mas dúzias de novas drogas e outros tratamentos são validados todos os anos e são então adotados amplamente. É certo que se investe muito mais dinheiro no processo de transferência dos indícios para a prática na medicina do que na educação, mas mesmo quando programas educacionais se mostram efetivos em experimentos controlados [randomized experiments] como os que são exigidos na medicina, esses programas raramente são usados em larga escala. Além disso, passar das evidências científicas para a prática é comum em muitas outras áreas, como a agricultura e a tecnologia. Mas não na educação.”

    A citação é da postagem ProvenTutoring.org: Getting Proven Tutoring Programs Into Widespread Practice, escrita por Robert Slavin. Uma maneira adicional de pensar no que ela traz para reflexão é esta: se não aceitamos, em geral, tratamentos que não foram testados em decisões sobre a saúde, por que é mais fácil fazê-los no âmbito das decisões de estado, institucionais e docentes no âmbito da educação?

  • De acordo com informações compiladas pela Secretaria da Saúde do Estado, o Rio Grande do Sul está neste momento na pior situação desde o início da pandemia de covid-19. No momento, todos os leitos de UTI destinados ao tratamento da doença estão ocupados, e a evolução destas ocupações evidencia um rápido crescimento desde aproximadamente 12/02/2021:

    Evolução da ocupação de leitos de UTI-covid no Rio Grande do Sul.

    O aumento das hospitalizações também aconteceu nos leitos clínicos (não-UTI):

    Evolução da ocupação de leitos clínicos no Rio Grande do Sul.

    O agravamento da pademia também é visível na evolução do número de infecções e no crescente número de mortes associadas à covid-19:

    Evolução do número de casos confirmados por data de início dos sintomas. Note-se que os dados dos últimos dias sofrem alteração para cima à medida que novas informações são lançadas.
    Evolução do número (e média móvel) de mortes por dia no RS. (As informações dos últimos dias sofrem alteração à medida que há atualização do sistema.)

    No momento, o Rio Grande do Sul já registrou mais de 12 mil óbitos pela covid-19, tendo uma taxa de 111 mortes por 100 mil habitantes (ou 1110 mortes/milhão de habitantes). Esta taxa só é mais baixa do que a de 30 países, segundo a compilação de informações nesta página da Wikipédia.

  • Instituições de ensino, que presam por ensinar para as novas gerações, entre outras coisas, uma seleção dos conhecimentos científicos acumulados pela humanidade, precisarão reparar, nos próximos anos, as perdas de aprendizado ocorridas durante a pandemia. Infelizmente, muitas decisões educacionais são tomadas sem embasamento científico rigoroso e são os estudos rigorosos, especialmente experimentos controlados, que permitiriam selecionar medidas de reparação efetivas. De maneira um pouco exagerada, costumo pensar que, se produzíssemos medicamentos ou vacinas da mesma maneira que produzimos decisões educacionais, estaríamos em maus lençóis; de maneira nem tão exagerada, muitas escolas darão remédios sem eficácia demonstrada para seus alunos nos meses que virão.