Resumo: neste texto (a) apresento de um modo bem superficial a, assim chamada, teoria da correspondência da verdade, (b) introduzo o problema epistemológico de como saber se nossas crenças ou pensamentos correspondem com a realidade, e (c) cito um trecho da Stanford Encyclopedia of Philosophy tratando do assunto de modo mais detalhado.
Não é incomum, ao se falar em teorias da verdade, apresentar a teoria da correspondência em conexão com algum exemplo do tipo: nossos antepassados pensavam que a Terra era plana (ou o centro do Universo), mas nós, hoje, sabemos que isso é falso. Menciona-se, também, a figura de Aristóteles, que afirma que dizer a verdade é dizer do que é, que é; e do que não é, que não é (Metafísica, Livro IV). Com isso, a teoria da correspondência da verdade poderia ser apresentada assim: o que dizemos (ou pensamos) é verdadeiro se, e somente se, as coisas (ou o mundo) são como dizemos que são; ou, ainda, uma proposição (crença ou afirmação) é verdadeira se, e somente se, corresponde com a realidade (ou aos fatos). Citando Strawson,
… um dos méritos do nome “correspondência” é mostrar que confrontando o juízo e a crença está o mundo natural ou a realidade, as coisas e os eventos com os quais os juízos e as crenças se relacionam, ou são acerca deles; e é como as coisas são no mundo natural, na realidade ou de fato, que determina se os nossos juízos ou crenças são verdadeiros ou falsos. (Análise e Metafísica, Cap. 4)
Com a teoria da correspondência enunciada assim, podemos evitar uma postura relativista que diria que para nossos antepassados era verdade que a Terra é plana (ou o centro), mas, para nós, isso é falso. Deveríamos dizer, no lugar disso, que eles tinham boas razões para acreditar no que acreditavam, mas… estavam errados.
Atentemos um pouco mais ao exemplo. O ponto que me fez escrever este texto é o seguinte. Podemos dizer que sabemos, hoje, que nossos antepassados estavam errados? Ou devemos dizer, meramente, que eles acreditavam em algo e nós, hoje, acreditamos no oposto? Bem, poder-se-ia dizer que, se é verdade que a Terra não é o centro do Universo, então o que temos hoje pode ser chamado de conhecimento. Mas podemos saber que sabemos (o que envolve saber se é verdadeiro isso em que acreditamos)?
Talvez esse ponto fique mais claro apresentando-o da seguinte forma. Se acreditamos que a Terra é esférica, isso é verdade se a Terra é, de fato, esférica. A crença deve ajustar-se à realidade. Mas como podemos confirmar que uma crença corresponde com a realidade, seria possível comparar uma coisa com a outra? Uma tal comparação exigiria que tivéssemos acesso à realidade de um ponto de vista externo ao nosso, já que todas as nossas crenças são a partir do nosso ponto de vista. Não podemos saltar fora de nossos pensamentos, nem de nossa linguagem para confrontar as crenças ou sentenças que julgamos verdadeiras com a realidade. “A ideia de um tal confronto é absurda”, nos diz Davidson (Ver “A coherence Theory of Truth and Knowledge”).
Para jogar algum esclarecimento nesse ponto (eu espero), traduzi um trecho de: David, Marian, “The Correspondence Theory of Truth”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2009 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall2009/entries/truth-correspondence/>.
Segue abaixo a tradução (as referências feitas ao longo do texto podem ser conferidas no link do original):
Nenhum acesso independente à realidade
A objeção que bem pode ter sido a mais efetiva em causar descontentamento com a teoria da correspondência está baseada numa abordagem (concern) epistemológica. Em poucas palavras, a objeção é que uma teoria correspondentista da verdade deve inevitavelmente conduzir a um ceticismo a respeito do mundo externo, porque a requerida correspondência entre nossos pensamentos e a realidade não é averiguável. Já desde o ataque de Berkeley à teoria representacional da mente, objeções deste tipo têm gozado de considerável popularidade. É tipicamente apontado que nós não podemos saltar fora de nossas mentes para comparar nossos pensamentos com a realidade independente-da-mente (mind-independent). Não obstante – assim continua a objeção – na teoria correpondentista da verdade, isso é precisamente o que teríamos que fazer para adquirir conhecimento. Nós teríamos que acessar a realidade como ela é em si mesma, independentemente de nossa cognição a seu respeito, e determinar se nossos pensamentos lhe correspondem. Uma vez que isso é impossível, já que todo o nosso acesso ao mundo é mediado por nossa cognição, a teoria correspondentista da verdade torna o conhecimento impossível (cf. Kant 1800, intro vii). Assumindo que o ceticismo resultante é inaceitável, a teoria da correspondência tem de ser rejeitada, e alguma outra abordagem da verdade, uma abordagem epistêmica (anti-realista) de algum tipo, tem que ser colocada em seu lugar (Cf., e.g., Blanshard 1941.)
Este tipo de objeção traz uma série de questões epistemológicas, de filosofia da mente e de metafísica geral. Aqui só podemos aludir a alguns pontos pertinentes (cf. Searle 1995, chap. 7; David 2004, 6.7). A objeção faz uso da seguinte linha de raciocínio: “Se verdade é correspondência, então, já que conhecimento requer verdade, temos que saber que nossas crenças correspondem com a realidade, se queremos conhecer algo acerca da realidade”. Há duas suposições implícitas nesta linha de raciocínio, ambas discutíveis.
(i) Assume-se que S sabe x somente se S sabe que x é verdadeiro – uma exigência não subscrita (underwritten) pelas definições padrão de conhecimento, que nos dizem que S sabe x somente se x é verdadeiro e S está justificado em crer x. A suposição pode repousar numa confusão entre os requisitos para saber x e os requisitos para saber que alguém sabe x.
(ii) Assume-se que, se verdade = F, então S sabe que x é verdadeiro somente se S sabe que x tem F. Isso parece altamente implausível. Pelo mesmo padrão seguir-se-ia que ninguém que não sabe que água é H2O pode saber que o Nilo contém água – o que significaria, naturalmente, que até razoavelmente pouco tempo ninguém sabia que o Nilo continha água (e que, analogamente, até pouco tempo ninguém sabia que há estrelas no céu, baleias no oceano, ou que o sol produz luz).
Além do mais, ainda se alguém sabe que água é H2O, sua estratégia para descobrir se o líquido em seu copo é água não tem que envolver análise química: ele poderia simplesmente prová-lo, ou perguntar a um informante confiável. De modo similar, tanto quanto diz respeito a saber que x é verdadeiro, parece que a teoria da correspondência não implica que temos que saber que uma crença corresponde a um fato para saber que ela é verdadeira, ou que nosso método de descobrir se uma crença é verdadeira tem que envolver uma estratégia de comparar efetivamente uma crença com um fato – embora a teoria certamente implique que obter conhecimento requer obter uma crença que corresponde a um fato.
De modo mais geral, alguém poderia questionar se a objeção é muito profunda (has much bite), umas vez que as metáforas de “acessar” e “comparar” são enunciadas com mais atenção aos detalhes psicológicos de formação de crença e a questões epistemológicas concernentes às condições sob as quais crenças estão justificadas ou garantidas. Por exemplo, é muito obscuro como a metáfora de “comparar” aplica-se ao conhecimento obtido em crenças formadas perceptualmente (perceptual belief-formation). Poder-se-ia perguntar, também, se abordagens da verdade concorrentes de fato gozam de alguma vantagem significativa em relação à teoria da correspondência, uma vez que estão presas (held) ao padrões estabelecidos por este tipo de objeção.
De qualquer forma, a objeção “Nenhum acesso independente à realidade” contra abordagens correspondentistas da verdade têm sido uma das, se não a, principal fonte de motivação para posturas idealistas e anti-realistas na filosofia (cf., e.g., Stove 1991). Apesar disso, a conexão entre teorias correspondentistas da verdade e o debate metafísico do realismo vs. anti-realismo (ou idealismo) parece menos direto do que frequentemente é assumido. Por outro lado, teóricos deflacionistas e da identidade podem ser, e tipicamente são, realistas metafísicos enquanto rejeitam a teoria da correspondência; e defensores de uma teoria da correspondência, por outro lado, poderiam ser idealistas metafísicos (e.g., McTaggart 1921) ou anti-realistas, sustentando que fatos são constituídos pela mente ou que quais fatos existem depende de algum modo de em que acreditamos ou somos capazes de acreditar.