Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

  • Quem veio antes? O ovo ou a galinha??

    Na verdade a pergunta é melhor assim:

    Quem veio antes:

    O ovo de galinha ou uma galinha (que bota ovos de galinha)?

    Achei meio que sem querer hoje na internet um interessante texto de Guido Imaguire. O texto propõe uma solução lógico-metafísica e uma biológica para o paradoxo do ovo e a galinha. Vale a pena dar uma lida (são 8 páginas). Pode render uma aula de filosofia para o ensino médio com direito a diálogo com a Biologia sobre evolucionismo, genética e tudo mais.

    O texto está em:

    http://www.filosofos.com.br/pdf/ovoegalinha.pdf

    Notas

    Encontrei alguns erros de concordância neste texto, penso que talvez ele tenha sido escrito meio às pressas e, por isso, acabaram escapando. Entretanto penso que há um equívoco que não é meramente gramático e vale mencionar:

    Na página 3, no parágrafo:

    “Depois desta curta análise nós já alcançamos bastante: Nós sabemos agora que a solução depende da alternativa entre CG1 e CO2. Mas qual destas condições nós podemos abdicar? Se CG1 (uma galinha cresce sempre e necessariamente de um ovo de galinha) é uma condição necessária, então a galinha existiu antes. Se CO2 (um ovo de galinha é sempre e necessariamente posto por uma galinha) é uma condição necessária, então a galinha existiu antes.”

    Sugiro trocar “a galinha” destacado por “o ovo“.

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    Peço aos leitores que não deixem de enumerar os erros que encontrarem através de comentários. Se alguém discordar da minha sugestão de correção, a crítica também será bem-vinda.

  • Meu objetivo neste pequeno texto é apresentar superficial e brevemente o contexto histórico em que se encontra e como Descartes passa de um conjunto de dúvidas a uma certeza: “eu existo”.

    Contexto histórico – Renascimentoi

    O século XVI, que precedeu Descartes (1596-1650), foi marcado por profundas transformações no modo como o homem compreendia o mundo. Esse período, chamado Renascimento, resgatou antigos conhecimentos dos Gregos que ficaram de lado durante a Idade Média. O período é também de novas descobertas de terras e povos (como acontece no continente Americano) e isso abalou profundamente o que se tinha por certo até então.

    Com a constatação de que muito do que se tinha por certo até então não estava bem fundado, desenvolve-se um clima de dúvida e descrença. Surgem alguns céticos colocando em dúvida aquilo que se tinha por conhecimento na época. Dirão que aquilo não era conhecimento: era mera opinião e carecia de certeza e segurança.

    O que fazer então? Era necessário desenvolver um método seguro, que fosse racional, e que pudesse conduzir ao conhecimento e evitar engano. Esta busca por um método seguro e confiável “vai caracterizar a investigação filosófica do século XVII”ii. O contexto de incertezas faz com que se procure um meio para atingir um conhecimento seguro.

    O método de Descartes

    Descartes, em meio ao contexto dado acima, se descontenta com a filosofia que lhe foi ensinada. A filosofia da qual Descartes fala é a Escolástica. Percebe que nela há dúvida, opiniões diversas e, além disso, as demais ciências se erguem sobre ela (como seria possível construir algo firme em cima de fundamentos tão moles!?)iii. Pensa, então, que é necessário começar um método novo para o conhecimento, e que este deve ser erguido do zeroiv.

    Para começar do zero é necessário abandonar o status de certas crenças, e submetê-las à razão. As que “passarem no teste” podem ser admitidas, as restantes devem ser abandonadas. Assim, cada crença deveria passar em um rigoroso teste para ser admitida como conhecimento. Não haveria espaço para opiniões duvidosas. O que é duvidoso deve ser deixado para trás.

    Descartes admirava-se do método matemático. Nele há exatidão, os conhecimentos se seguem uns dos outros dedutivamente; do mais simples ao mais complexo, e de modo ordenado. Era necessário ter um método com características semelhantes para o conhecimento em geral. Por isso, busca-se por um princípio sólido, exato e indubitável para a filosofia.

    Da dúvida à certeza

    Bem, já se tem uma idéia de como começar: colocar tudo o que é duvidoso em xeque e só manter o que “sobreviver ao teste”. Descartes, então, coloca em dúvida três pontos centraisv:

    • As informações fornecidas pelos sentidos:

    “Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar.”

    • Os resultados até então alcançados pelo raciocínio:

    “E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias da Geometria, … rejeitei como falsas … todas as razões que eu tomara até então por demonstrações.”

    • Os pensamentos:

    “ E … considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos.”

    Ressaltado estes três pontos, Descartes chega, então, ao seguinte raciocínio:

    “Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.”

    Como se vê, Descartes ao querer colocar tudo em dúvida, supor que tudo que soubera até então era falso, não pode duvidar de uma coisa: que quem duvida, pensa; e, se alguém pensa, esse alguém é algo; ou seja, existe. Daí: se penso, então existo!

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    iApoio-me aqui na seção “Vida e Obra” do livro Descartes da coleção “Os pensadores”, ed. Abril Cultural, 1983.

    iiNo livro citado acima, página IX.

    iiiVeja, no livro citado, Discurso do Método, Primeira Parte, p. 32.

    ivNo mesmo lugar, p. 35.

    vAs informações que seguem e também as citações foram retiradas da Quarta Parte do Discurso do Método, Quarta Parte.

  • Frege em Os Fundamentos da Aritmética nos fornece algumas “ferramentas” para lidar com conceitos e objetos. A partir destas “ferramentas”, pode-se compreender de uma maneira mais ampla noções como as de existência, número, unicidade, nada, entre outras. O objetivo deste texto será este, ou seja, compreender melhor estas noções a partir de uma compreensão das noções de conceito e objeto.

    Tomemos como exemplo o conceito “estudantes de filosofia da Ufsm”. Frege diria que aqui podemos dintinguir duas coisas: as “propriedades do conceito” e as “notas características do conceito”.

    Por “notas características do conceito” Frege entende as propriedades que um objeto deve ter para “cair sob” o conceito em questão. São notas características do conceito que dei como exemplo “ser estudante”, “ser homem”, “estudar”, isto é, propriedades das coisas que são estudantes de filosofia. Diferentemente se dá com as propriedades do conceito. Um tipo de propriedade do conceito “estudantes de filosofia da Ufsm” é, por exemplo, “não ser vazio” ou “ter mais de 60 membros”.

    O que Frege diferencia aqui são características do conceito de características das coisas que caem sob o conceito. “Ser estudante” é uma característica de uma pessoa (objeto) de carne e osso, não de um conceito. Já “não ser vazio” é uma característica lógica de um conceito (que é abstrato). Um estudante de carne e osso cai sob um conceito lógico. Exemplificando: O estudante é um ser humano, mas não é “não-vazio”; o conceito é “não-vazio”, mas, por ser conceito, não estuda, nem é homem.

    (Algo interessante de ressaltar aqui é que um conceito pode cair sob outro de ordem superior. O conceito “homem” pode cair sob o conceito “animal”. Aqui cada conceito terá características diferentes (e também diferentes coisas que caem sob cada um). O número de coisas que cai sob o conceito de animal é muito maior que o número de coisas que caem sob o conceito de homem. Mas o número de coisas que cai sob o conceito de homem não é uma característica do conceito de animal).

    Existência e Número

    Como deve ter dado a entender até aqui, Frege considera que um número (como 0, 1, 100) é uma propriedade que se aplica a um conceito, e não de um objeto. Um número não é considerado uma abstração a partir de um grupo de objetos. Como consequência disto temos que ter um conceito não implica em ter algo que caia sob ele (algo que o exemplifique). Quero dizer, podemos definir as notas características de um conceito (propriedades que os objetos devem ter para cair sob o conceito que definimos) e, mesmo assim, não haver uma coisa que tenha estas propriedades que especificamos. Ou seja, pode haver conceitos vazios.

    Negar que exista algo que caia sob um dado conceito, segundo Frege, é o mesmo que lhe atribuir (ao conceito) o número zero. Exemplifico:

    “Não existe um círculo quadrado”, diz a mesma coisa que:

    “Zero coisas são um círculo quadrado” ou ainda:

    “Nada é um círculo quadrado”.

    Negar a existência é o mesmo que atribuir o número zero a um conceito (e “nada” exerce aqui esta mesma função). Atribuir qualquer outro número maior do que zero implica que o conceito não é vazio. Assim: “60 pessoas estudam filosofia na Ufsm” atribui o número 60 ao conceito “pessoa que estuda filosofia”. Também podemos falar o mesmo da noção de unicidade. Unicidade também é propriedade de um conceito, equivalente a atribuição do número 1 ao conceito (exemplo “lua da Terra”). “Sob este aspecto”, diz Frege, “a existência assemelha-se ao número”, assim como a noção de unicidade, nada (negação de existência) entre outras.

    Referência Bibliográfica:

    Frege, Os fundamentos da aritmética, §45 – §54.

  • Eis a forma lógica de uma contradição:

    p ^ ¬p

    A simbologia acima, que diz a mesma coisa que “p e não-p” têm a seguinte significado:

    p: é uma variável para uma proposição qualquer. A proposição é algo por cuja verdade podemos perguntar, isto é, a proposição pode ser verdadeira ou falsa. Para auxiliar a compreensão do que seria uma proposição poderíamos dizer que quando afirmo (a) “o sol brilha” e (b) “the sun shines”, estou afirmando a mesma proposição, embora em (a) o faça em português e em (b) em inglês.

    ^: O símbolo “^”, chamado “conjunção”, é uma constante lógica, com função semelhante ao que alguns usos de “e” têm na linguagem cotidiana. Uma conjunção como “p E q” será verdadeira se, e somente se, as proposições p e q, forem ambas verdadeiras. Se qualquer uma (ou ambas) forem falsas a conjunção das duas proposições será falta.

    ¬ : este símbolo (equivalente a “~”) indica uma negação. O valor de verdade da negação de uma proposição é o oposto da proposição. Isto quer dizer que a negação inverte o valor de verdade da proposição, ou seja, se p for verdadeira, então ¬p (negação de p, ou não-p) será falsa.

    Esclarecido o que dizem os símbolos usados para representar uma contradição, vamos analisar agora o que significa a contradição propriamente dita, o que quer dizer afirmar “p e não-p”. O que a contradição faz é afirmar que uma mesma proposição qualquer (p), é verdadeira E, ao mesmo tempo, falsa (o que é absurdo). Poderíamos exemplificar o absurdo que é supor que uma proposição é verdadeira e falsa com o seguinte exemplo:

    O sol brilha e o sol não brilha.

    Uma afirmação dessas é uma falsidade lógica, impossível de ser verdadeira. Toda e qualquer afirmação que tiver esta forma será falsa, qualquer proposição da forma “p e não-p” é absolutamente falsa. Se é verdade que o sol brilha, então é falso que ele não brilha.

  • Foi-nos proposto numa disciplina sobre ensino de filosofia escrever sobre o assunto “regras”. O texto deveria buscar contemplar os mais diversos usos que fazemos da noção de regra, incluindo ainda o modo como outras disciplinas do currículo escolar usam tal conceito. Foi considerada interessante uma distinção entre regras constitutivas e regras reguladoras, feita por John Searle no capítulo 2, seção 5 do livro Speech Acts (Atos de Fala). No que segue tentarei de apresentar esta distinção, chamando atenção para o que seriam as regras constitutivas.

    Como já dito a distinção feita é entre dois tipos de regras: as constitutivas e as reguladoras. Segundo o próprio Searle:

    “[…] nós poderíamos dizer que regras reguladoras regulam formas de comportamento anterior e independentemente [de tais regras] existentes; por exemplo, muitas regras de etiqueta regulam relacionamentos interpessoais que existem independentemente das regras. Mas regras constitutivas não meramente regulam, elas criam ou definem novas formas de comportamento. As regras do futebol ou xadrez, por exemplo, não meramente regulam o jogo de futebol ou xadrez, mas, tal como são, elas criam a própria possibilidade de jogar tais jogos. As atividades de jogar futebol ou xadrez são constituídas pelo agir de acordo com as (ao menos um vasto subgrupo de) regras apropriadas.”

    O que Searle quer destacar é que há regras que meramente regulam e outras que regulam uma atividade que elas também especificam o que seja. Não existiria isto que chamamos de jogo de xadrez se não houvesse um sistema de regras que dissesse como se deve proceder para estar jogando xadrez. Uma pessoa que não tenha a mínima noção do que seja um jogo de tabuleiro (e, portanto também um jogo de xadrez) poderia assim se expressar ao ver duas pessoas jogando xadrez:

    “ali há duas pessoas, cada uma sentada do lado de uma tábua quadrada, na qual estão pintados diversos quadradinhos pintados, de modo intercalado, nas cores branco e preto. Sobre esta tábua há estatuetas de diversas formas, umas amarelas, outras pretas. Estas duas pessoas ficam em silêncio e vagarosamente cada um (um depois do outro) mexe uma estatueta sobre a tábua…”

    O que tento mostrar com este exemplo é que sem algo (um conjunto de regras) que diga o que é jogar xadrez, não podemos dizer que um determinado comportamento de dois indivíduos é uma partida de xadrez. O outro tipo de regras, as reguladoras (ou normativas), poderia ser exemplificado por regras de etiqueta. Podemos muito bem dizer que estamos comendo peixe, mesmo que haja uma regra de etiqueta que diga como devemos comer peixe. De qualquer maneira estaremos comendo peixe mesmo que façamos isto sem respeitar uma regra que diga, por exemplo, que não se deve comer com as mão, ou algo do tipo.

    Pretendo, num próximo post, usar desta distinção para fazer uma explicação mais detalhada dos diversos tipos de regras com as quais nos deparamos no dia a dia.


    1 Searle, Speech Acts. New York, 2007, pg 34s, minha tradução.

  • Discutimos hoje na disciplina de Filosofia Medieval o Problema do Mal na Idade Média. Mais especificamente, fizemos isto baseando-nos no Livro VII das Confissões de Santo Agostinho. No que segue tentarei reproduzir o problema.

    A discussão toda parece começar dos seguintes pressupostos:

    (a) Deus (por definição) é o Ser mais bom, mais poderoso, mais sabido que podemos conceber.

    (b) Deus criou todas as criaturas (o homem, o tempo, e tudo o mais).

    Partindo dessas afirmações a pergunta que se nos coloca é:

    Como pode haver mal no mundo se Deus é todo bondoso e tudo o que existe foi feito por ele?

    A pergunta é problemática, pois se tudo é obra de Deus, então o mal também é sua obra e, portanto, Deus também é mal. Mas, ora, a definição de Deus não é compatível com ele ser em alguma medida mal, pois, se Deus é aquilo que é todo bondoso e perfeito, algo que é mal em qualquer medida não pode ser Deus.

    Penso que o problema pode ficar mais claro se explicar-mos assim (vou reconstruir o conceito de Deus sob a variável “x”): “x” é o nome que damos àquilo que de mais perfeito podemos conceber. Para uma coisa ser chamada de “x”, esta coisa tem de ser perfeitamente boa, perfeitamente sábia, perfeitamente poderosa. Agora pense que y cria diversas criaturas, entre elas nós. Acontece que estas criaturas não são perfeitas, estão sujeitas à mudança, à corrupção, à maldade. Poderemos dizer que y é x? Uma coisa toda poderosa e boa poderia criar algo que não fosse perfeitamente bom, algo imperfeito, ou ainda algo capaz de maldade? Ou seja, poderíamos dizer que Deus é x mesmo assim? Ou ainda: poderíamos chamar de x algo que cria algo mal?

    Uma parte da solução de Agostinho é dizer que o mal não é uma criatura, portanto, Deus não o criou. Mas e de onde vem o mal que admitimos que no mundo? Segundo Agostinho, este mal se origina no livre arbítrio da vontade humana. O ser humano, por não ser perfeito (se fosse seria Deus, ok!?) está suscetível a realizar atos maus. Faz isto quando não vai em direção a Deus, segundo Agostinho. O mal será, para ele, uma perversão da vontade desviada do ser supremo que é Deus. Assim, Agostinho consegue escapar de dizer que o mal é criação divina.

    Mas e aí: Deus cria algo (o homem) capaz de cometer o mal. Deus (se é todo sabido) sabia disto antes de criar. Por que criou, então, se sabia que a sua criação seria imperfeita e sujeita a cometer o mal?

    Uma resposta que se pode dar é que a vontade livre é uma condição para a felicidade humana. Sendo assim ela é em si mesma um bem e só pode ser fonte de mal através de seu mal uso pelo homem. O homem que, por ser criatura divina é bom, não é perfeitamente bom (pois se fosse seria Deus). Mas, mesmo sendo em alguma medida bom, é corruptível e capaz de agir maldosamente. O problema todo é como compatibilizar isto: Um Deus todo bom e poderoso com uma criatura Sua que é capaz de fazer o mal.

    Este problema “metafísico-teológico” é algo que alimenta grande parte da Filosofia Medieval. Volto a postar quando ficar sabendo que desdobramentos  esta discussão terá na história posterior da  filosofia.

  • As citações abaixo foram retiradas da obra Ensaio sobre o entendimento humano (1748) de David Hume.

    Hume começa a seção IV de seu Ensaio sobre o entendimento humano afirmando que o a investigação humana pode ter foco dois objetos distintos: (a) relações entre idéias e (b) relações entre fatos. Em (a) podemos incluir as verdades matemáticas, como que 2 + 2 é igual a 4. Neste campo não precisamos de informações empíricas, o puro raciocínio descobre verdades deste tipo e delas pode ter certeza, i.é., 2+2 sempre será igual a 4.

    Com relação a (b), a investigação sobre relações entre fatos, Hume diz que as proposições deste tipo parecem sempre depender de aceitação de uma relação de causa e efeito. É com base nesta relação que a ciência trabalha. As afirmações da física tradicional (sem entrar em discussões sobre a atual mecânica quântica), da biologia, da química são resultado deste tipo de investigação. Esta relação, como Hume diz, não será conhecida pelo puro raciocício:

    “Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação [de causa e efeito] não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si.”

    Como a citação fala claramente, Hume declara que não se pode ter a idéia de que um certo acontecimento causa outro puramente pelo uso da razão. Esta noção é desenvolvida na medida em que observamos regularidades de acontecimentos e a partir disto inferimos que um deve ser a causa do outro.

    “Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela.”

    Causa e efeito sempre são coisas distintas: eis a razão dada por Hume para que a razão, por ela mesma, não possa imaginar, senão arbitrariamente, em que efeito uma dada causa poderá resultar.

    “Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.”

    Podemos entender, auxiliados pela citação seguinte, por que a ciência (ou as afirmações acerca dos fatos) são sempre frágeis. A experiência nos mostra regularidades, que um acontecimento geralmente segue-se de outro. Acontece que não há uma relação de necessidade lógica, ou melhor, não há uma justificação racional para que acreditemos que se ontem e hoje A “causo” B (ou melhor: sempre que A ocorreu, B também ocorreu) isso seguirá se repetindo no futuro. A isto podem ser acrescentados os enganos com que frequentemente nos deparamos ao afirmar supostas relações de causa e efeito.

    Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e modesto jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural, ou mostrar distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se-á que o esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquer explicação
    particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos estão totalmente vedados à curiosidade e à investigação humanas. A elasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a comunicação de movimentos por impulso são provavelmente as causas e princípios últimos que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se, mediante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até, ou quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorância , a filosofia mais perfeita — do gênero moral ou metafísico — revela -nos, talvez, que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos. Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.”

  • “Argumentei […] que não há valores [morais] objetivos, […] que conclusões morais substantivas ou limitações sérias sobre pontos de vista morais não podem ser derivadas dos significados dos termos morais nem da lógica do dircurso moral” (Mackie 1977, 105)

    Mackie tem uma posição subjetivista (ou cética) quanto à moral. Segundo ele valores morais, ou uma ética, não serão descobertos, mas construídos. Ele também afirma que a análise dos termos morais e da lógica de sua linguagem não são suficientes para se fazer descobertas substantivas quanto a este assunto.

    “Moralidade não deve ser descoberta, mas deve ser construída: nós temos de decidir quais pontos de vista adotar, quais posições tomar. […] O objeto é […] decidir o que fazer, o que tolerar e o que condenar, quais princípios de conduta aceitar […] Entretanto, ainda se estamos olhando para a moralidade por esta via, há uma distinção a ser feita. Moralidade em sentido amplo seria uma teoria da conduta universal, que inclua a todos: a moralidade que alguém endossa seria todo aquele corpo de princípios que ele aprovou definitivamente para guiar ou determinar suas escolhas de ação. No sentido estrito, moralidade seria um uma sistema de um tipo particular de limitações sobre a conduta – algo cuja tarefa central é proteger os interesses de pessoas outras que o agente […]” (Mackie 1977, 106)

    No sentido mais estrito, a moralidade funciona como um mecanismo para evitar que o agente (de modo egoísta) aja desrespeitando os interesses das demais pessoas para satisfazer os seus.

    “A função da moralidade é primeiramente conter esta limitação das simpatias* dos homens. Nós podemos decidir qual deve ser o conteúdo da moralidade através de um investigação sobre como isto pode melhor ser feito” (Mackie 1977, 108)

    (*) Simpatia: capacidade de compartilhar com outra os seus interesses e assim compartilhar o prazer ou dor desta pessoa.

    Obs: As citações acima são traduções minhas do original citado.

    Referências:
    Mackie, John L. (1977) Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books.