Marcelo Fischborn

Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal Farroupilha. Autor de Por que pensar assim? Uma introdução à filosofia

  • Uma das perguntas que o filósofo Donald Davidson tentou responder foi a seguinte: o que torna possível o pensamento? Antes de mais nada se faz necessário dizer o que ele entendia por pensamento: pensamentos (segundo ele) têm conteúdo proposicional (que pode ser verdadeiro ou falso) e são coisas como crenças, quereres, dúvidas, expectativas e semelhantes.

    Abaixo segue uma tradução minha de um trecho que fala desse asunto. Uma curiosidade é que ele distinguiu duas perguntas: (a) O que torna o pensamento possível? (que seria a questão filosófica); e (b) Por que existe o pensamento? (uma questão científica, segundo ele). Mais curioso ainda é que muitas das críticas que foram e continuam sendo dirigidas a Davidson usam de alguma forma resultados de pesquisas científicas (principalmente das chamadas ciências cognitivas).

    “Devemos nos espantar por haver uma tal coisa como o pensamento. Por pensamento não quero dizer apenas afirmação ou negação, mas dúvida, intenção, crença, desejo ou a contemplação ociosa de possibilidades. O que define pensamento, tal como eu uso a palavra, é o conteúdo proposicional, e o que define conteúdo proposicional é a possibilidade de verdade ou falsidade: um conteúdo proposicional tem condições de verdade, mesmo se não é nem verdadeiro nem falso.

    Há ao menos duas razões por que deveríamos ficar espantados com a existência do juízo. A primeira é que não é de modo algum claro por que ele existe; a segunda é que é difícil entender até mesmo o que o torna possível. A respeito do primeiro ponto tenho pouco a dizer, uma vez que a resposta à questão de por que existe o juízo teria que nos dizer por que a evolução produziu criaturas que podem manter (entertain) proposições, e isso é assunto para especulação ou descoberta por cientistas. A causa para espanto (como Kant disse) é que parece que poderíamos operar no mundo, ao menos tão eficientemente quanto o fazemos, sem o uso de atitudes proposicionais. A habilidade de discriminar, agir de modo diferenciado na presença de indícios de comida, perigo ou segurança, está presente em todos os animais, e não requer raciocínio. Nem mesmo o aprendizado, mesmo de hábitos complexos, requer raciocínio, pois é possível aprender como agir sem aprender que qualquer coisa seja o caso. Uma criatura tão capaz quanto somos de comportamento adaptativo não-treinado (unrehearsed) poderia ser programada pela natureza para fugir do perigo e preservar sua saúde e conforto, sem aquilo que chamamos pensamento.” (Davidson, “The problem of objectivity” [1995], em Problems of Rationality. Oxford: Clarendon Press, 2004).

  • Criei uma enquete para tentar conhecer mais o público que visita o blogue. Isso poderia ajudar na hora de decidir como escrever os textos de uma maneira mais adequada para o público frequentador. Pode-se ver e votar na coluna aí à direita; ou abaixo:

  • Voltemo-nos agora para a questão de por que não é possível haver leis psicofísicas, de por que “eventos mentais, tais como percepções, recordações, decisões e ações não se deixam capturar pela rede nomológica da teoria física” (Davidson no artigo “Mental Events”). As razões pelas quais leis psicofísicas são vistas como desejáveis, e, portanto, o porquê de a negação de sua possibilidade ser importante, são duas. Primeiro, tais leis nos possibilitariam explorar o preciso e avançado conhecimento que temos da teoria física no contexto do mental. Isso é particularmente claro se são consideradas questões tais como o tratamento de doenças mentais. Leis psicofísicas, caso existissem, bem poderiam abrir expectativas de tratamentos farmacológicos ou cirúrgicos precisos para depressão, esquizofrenia e semelhantes. Em segundo lugar, a existência de leis psicofísicas teria ramificações para o problema mente-corpo, o problema de dizer como mente e matéria se relacionam. (EVNINE, Simon (1991), Donald Davidson. Stanford University Press: Stanford, p. 17).

    Livro:
    Evnine, S. Donald Davidson: ver em Amazon.com.

  • O trecho abaixo é uma tradução minha de um trecho (páginas 8-9) de EVNINE, Simon (1991), Donald Davidson. Stanford University Press: Stanford. É apresentada uma distinção entre duas perspectivas a partir das quais os estados mentais em geral podem ser investigados: a perspectiva interna (de primeira pessoa) ou a externa (de terceira pessoa)*. É também levada em conta uma distinção entre duas grandes classes de estados mentais: sensações (como dores e o que é dado pelos sentidos em geral) e atitudes proposicionais (desejar que amanhã não chova, acreditar que o Brasil ganhará a copa de 2014, por exemplo).

    (*) Pode-se associar, também, com a perspectiva da primeira pessoa concepções de que conhecemos “o que se passa em nossas mentes” por introspecção. Com a perspectiva de terceira pessoa, vinculam-se nomes como comportamentalismo (behaviorismo), ciência cognitiva, externalismo.

    Há dois pontos a partir dos quais examinar estados mentais em geral. Eles podem ser estudados do interior, ou do ponto de vista da primeira pessoa, ou como aparecem de fora, da perspectiva de terceira pessoa. A abordagem de primeira pessoa atinge sua proeminência com sensações, uma vez que o modo característico como estas aparecem é experienciado apenas por quem as sente. Eu sinto minha dor de um modo como não sinto, nem nunca poderei sentir, a dor de um outro alguém. Mas a abordagem de primeira pessoa tem sido também aplicada a atitudes proposicionais, e dificilmente seria um exagero dizer que toda a filosofia moderna – de Descartes, por Hume, a Kant e adiante – a pressupõe. (De fato, a distinção entre os dois tipos de estados mentais nem sempre é claramente feita por esses filósofos.)

    Apesar de suas óbvias vantagens, a abordagem de primeira pessoa tem certos inconvenientes. Principalmente, levanta a possibilidade de que os estados mentais dos outros sejam radicalmente impossíveis de serem conhecidos. Se pensamos estados mentais como coisas mais bem conhecidas por seus portadores, logo nos deparamos com a possibilidade de nunca podermos realmente saber quais estados mentais os outros têm. E, mesmo se essa consequência não é inevitável, teremos ainda a séria tarefa de justificar nossa crença de que outras pessoas têm estados mentais assim como nós.

    Problemas como esses sugerem que tomemos uma abordagem alternativa do mental, baseada na perspectiva de terceira pessoa. Essa perspectiva é particularmente apropriada para atitudes proposicionais, como opostas a sensações, pois, enquanto é óbvio que há algo sobre uma dor que apenas seu portador pode saber (i.é. como é sentida), não há obviamente nada assim quanto a ter uma crença de que Colombo descobriu a América. Além do mais, a explicação e entendimento em termos de racionalidade é uma atividade humana particular e característica. Esse tipo de entendimento é essencialmente uma atividade comunal, muito relacionada à ação, que é em princípio pública e observável por todos. Estados como crença e desejo desempenham um papel especial em entender ou dar sentido às pessoas nesse modo característico. A perspectiva de terceira pessoa, aplicada a atitudes proposicionais, tornou-se hoje em dia comum na filosofia.

  • Há um problema filosófico muito discutido que diz respeito à compatibilidade, ou não, da verdade da tese do determinismo e a legitimidade de noções morais, tais como responsabilidade, culpa, etc. O conflito poderia ser enunciado da seguinte maneira: se todas as nossas ações estão determinadas, então não pode haver culpa nem mérito moral. Como eu poderia ser culpado, ou receber o mérito de algo, se não escolhi ou agi por livre escolha?

    Muitos filósofos, entretanto, defenderam, e por razões diversas, que não há conflito entre as noções morais e o determinismo, ou mesmo, entre determinismo (ou necessidade) e liberdade. Há os que dizem, inclusive, que pior seria se fosse verdadeiro o indeterminismo.

    Uma posição famosa nessas discussões é a de Peter Strawson. Abaixo segue uma tradução da apresentação da sua posição que é feita na Stanford Encyclopedia of Philosophy:

    ——–

    Strawson sempre brincou que se voltaria à filosofia moral somente quando suas forças estivessem se acabando (waning). Ele escreveu demasiado pouco sobre isso, mas sua principal contribuição, “Freedom and Resentment” (Strawson, 1960. Em português, “Liberdade e Ressentimento”), é hoje talvez seu artigo mais famoso e amplamente discutido. O objetivo de Strawson é dissolver o, assim chamado, problema do determinismo e responsabilidade. Seu argumento é que nossas “atitudes reativas”, para com os outros e nós mesmos, tais como atitudes de gratidão, ódio, simpatia e ressentimento, são naturais e irrevogáveis. A presença delas, portanto, não necessita uma autorização (entitlement) abstrata da filosofia, a qual é simplesmente irrelevante para a existência ou justificação das mesmas. Não pode haver princípios abstratos a priori localizando condições metafísicas gerais para tais atitudes. Sua alegação, é que nossa prática de julgar nós mesmos, ou um outro qualquer, como responsáveis por ações é, de modo similar, natural e independente de requisitos metafísicos gerais. Entre o determinismo e a responsabilidade não pode haver conflito. Poder-se-ia ver nisso uma aplicação de algumas ideias de caráter Humeano, para um domínio ao qual o próprio Hume não estava inclinado a aplicá-las.

    ——–

    Tradução de Marcelo Fischborn, da seção “8.5 Freedom and Resentment” em

    Snowdon, Paul, “Peter Frederick Strawson”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2009 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall2009/entries/strawson/&gt;.

  • “A experiência consciente é ao mesmo tempo a coisa que melhor conhecemos no mundo e a mais misteriosa. Não há nada que conheçamos de forma mais directa do que a consciência mas é incrivelmente difícil conciliá-la com o resto dos nossos conhecimentos. Porque é que existe? O que faz? Como é possível que nasça de processos neuronais no cérebro? Estas são algumas das questões mais intrigantes de toda a ciência.” (Chalmers)

    Um dos problemas envolvendo a consciência é explicar como alguma coisa, que é composta unicamente de matéria, pode vir a ter pensamentos, intenções, ter pensamentos acerca de outras coisas. Se abríssemos nosso cérebro não veríamos lá dentro pensamentos, lembranças, imagens de amigos, nem o ônibus que sabemos que temos que correr para pegar. Como se dá isso?

  • Uma característica sempre enfatizada da filosofia é que ela se ocupa com problemas. Neste texto, seguindo a formulação de David Hume na Investigação acerca do Entendimento Humano, apresentarei o famoso problema da indução.

    Em linhas gerais, ao menos tal como Hume o colocou, o problema pode ser apresentado como segue:

    Há alguma razão para que presumamos que as regularidades causais que observamos no passado continuarão se dando no futuro? Há alguma justificativa racional para que, em geral, presumamos que as coisas serão no futuro semelhantes a como foram até então? Ou, ainda, podemos justificar por raciocínios nossa crença de que o sol nascerá amanhã, apenas pelo fato de ele ter nascido todos os dias que já vivemos até hoje?

    A resposta de Hume, como muitos talvez já saibam, é negativa. Não é por raciocínios, por argumentos dedutivos, que demonstraremos que o futuro será semelhante ao passado. O problema pode também ser formulado assim:

    P1: Vi que o sol nasceu no dia 08 de março de 1990.
    P2: Vi que o sol nasceu no dia 09 de março de 1990.

    Pn: Vi que o sol nasceu todos os dias desde 08 de março de 1990 até hoje, 09 de Maio de 2010.
    (C) Logo, O sol nascerá amanhã. (Aqui foi feita uma indução).

    Essa conclusão não se segue das premissas. É logicamente possível que as premissas todas (de P1 até Pn) sejam verdadeiras e, ainda assim, a conclusão (C) seja falsa.

    O problema filosófico aí, o qual ocupou vários filósofos desde então, seria o de como justificar ou explicar essa inferência que sempre fazemos. O próprio Hume sabia que sempre fazemos essa inferência (todo mundo “sabe” que o sol nascerá amanhã). Mas é desconfortante pensar que isso, que é tão presente em nossas vidas, seja fruto de uma falha lógica, que não é um raciocínio logicamente válido que sustenta essa nossa inferência. Poderíamos dizer, inclusive, que a própria ciência para funcionar (fazer previsões e tudo o mais) está vulnerável a esse problema. Também isto, que não poucas vezes temos como a única certeza que podemos ter na vida – que vamos morrer –, repousa numa inferência logicamente inválida. Tamanha é a abrangência do problema da indução!

    ———

    Referência: HUME, Investigação acerca do entendimento humano, Sec. IV [ver o livro na Livraria Cultura].

  • “[…] as cores, o paladar, etc., são justificadamente considerados, não como qualidades das coisas, mas apenas como modificações do nosso sujeito e que podem até ser diferentes, consoante a diversidade dos indivíduos.” (Kant, Crítica da Razão Pura, B42, ed. Fundação Calouste)

  • Título: O Futuro da Filosofia
    Autor: John R. Searle
    Páginas: 3 (primeira parte do original)
    [ Acesse o texto aqui ]

    “Essas características das questões filosóficas, que elas tendem a ser questões estruturais e não se prestar à pesquisa empírica sistemática, explicam por que a ciência está sempre “certa” e a filosofia sempre “errada”. Tão logo encontramos um modo sistemático de responder uma questão, e chegamos a uma resposta que todos os investigadores competentes na área possam concordar que é a resposta correta, paramos de chamá-la “filosófica” e começamos a chamá-la “científica”.” (John Searle em “O Futuro da Filosofia”)
    

  • “Há muitas pessoas, incluindo filósofos, psicólogos e particularmente aqueles que admiram a inteligência surpreendente de animais sem linguagem (speechless), que identificam a habilidade de discriminar itens que têm certa propriedade com ter um conceito – com ter o conceito de ser um tal item. Mas eu não usarei a palavra ‘conceito’ desse modo. Minha razão para resistir a esse uso é que, se o aceitássemos, estaríamos comprometidos em defender que os mais simples animais têm conceitos: mesmo uma minhoca, que tem um cérebro tão pequeno que, se cortada em duas, cada parte comporta-se como a inteira não-dividida se comportava, teria os conceitos de seco e úmido, do comestível e não-comestível. De fato, deveríamos creditar tomateiros ou girassóis com os conceitos de dia e noite.

    Eu preferirei, portanto, reservar a palavra ‘conceito’ para casos onde faça claramente sentido falar de um engano (mistake), um engano não apenas como visto do ponto de vista de um observador inteligente, mas como visto do ponto de vista da criatura. Se uma minhoca come veneno, ela não cometeu um engano nesse sentido – ela não confundiu (mistaken) uma coisa com outra: ela simplesmente fez o que está programada para fazer. Ela não classificou erroneamente o veneno como comestível: o veneno simplesmente forneceu o estímulo que a fez comer (caused it to eat). Mesmo uma criatura capaz de aprender a evitar certos alimentos, não pode, por esta razão sozinha, ser dita ter os conceitos de comestibilidade e incomestibilidade. Uma criatura poderia construir um ‘mapa’ do seu mundo sem ter a ideia de que aquilo era um mapa de alguma coisa – que era um mapa – e, assim, poderia estar errado.

    Aplicar um conceito é fazer um juízo, classificar ou caracterizar um objeto, evento ou situação de um certo modo, e isso requer aplicação do conceito de verdade, uma vez que é sempre possível classificar ou caracterizar erroneamente alguma coisa. Ter um conceito, no sentido que estou dando à palavra, é, então, ser capaz de portar [manter, entertain] conteúdos proposicionais: uma criatura tem um conceito somente se é capaz de empregar tal conceito no contexto de um juízo. Poderia parecer que alguém teria o conceito de, digamos, uma árvore, sem ser capaz de pensar que, ou admirar-se que, algo é uma árvore, ou desejar que haja uma árvore. Entretanto, tal conceitualização não remeteria a mais que ser capaz de discriminar árvores – agir de algum modo específico na presença de árvores – e isso, como eu disse, não é o que eu chamaria de ter um conceito. Para reverter para um ponto anterior: dada a teoria da evolução, não é difícil imaginar uma explicação primitiva da faculdade de discriminação: um colibri, por exemplo, sobrevive porque está programado a alimentar-se de flores na variedade de cores vermelhas e infravermelhas, e essas são as flores que contêm os alimentos que tendem a sustentar o colibri. Não é fácil dizer o que deve ser acrescentado ao poder de discriminação para transformá-lo em domínio de um conceito.

    Esses atributos mentais são, assim, equivalentes: ter um conceito, manter proposições, ser capaz de fazer juízos, ter o domínio do conceito de verdade. Se uma criatura tem um desses atributos, ela tem todos. Aceitar essa tese é dar o primeiro passo em rumo a reconhecer o holismo – isto é, a interdependência essencial – de vários aspectos do mental.” (“The Problem of Objectivity” em Problems of Rationality, Oxford: Clarendon Press, 2004, pp8-9, minha tradução).